quinta-feira, 16 de junho de 2016

"O SOALHO QUE RANGE - Soares Teixeira



Abro a porta devagar
Lá estás tu
Ricardo Reis
Atrevo-me… e entro
avanço uns passos
devagar porque o soalho range
e não te quero incomodar
Estás sentado a uma secretária
não me vês
mas eu vejo-te
sereno, tranquilo,
disciplinado no gesto lento com que folheias
o jornal que estás a ler

Observo em redor
Dois jogadores de xadrez
deslizam no espaço
entre eles o tabuleiro com as pedras
e um púcaro de vinho
a um canto ardem casas e mulheres são violadas.
Indiferentes,
apenas atentos ao seu velho tabuleiro de xadrez
os jogadores jogam

Cerro os punhos
As minhas horas não são plácidas
Não sei que faço aqui
nem como aqui vim parar
Mas o facto é que aqui estou
e estando sou
sem nada nas mãos
a não ser o elas estarem fechadas

Penso:
(enquanto oiço os sons da cidade destruída
- aquela, ao canto, e a que me arde no peito)

Execrável, aquela besta humana
que já nem memória tem
da sua própria humanidade
Tornou-se demora de ódio
sobre os pinheiros que crescem
nas almas alheias
Lá, no fundo da gruta onde se refresca
com o sangue das suas vítimas,
abraça os mortíferos insectos
que diligentemente vai criando
e quando leva as mãos aos lábios
acaricia
o gume da lâmina com que mente
e mente e mente e mente

Os jogadores de xadrez observam-me
por breves instantes, com ar interrogativo
Enfrento-os

O ângulo do meu queixo questiona-os

Calma?
louvar a serenidade?
ser sossego na vida?
não resistir à atrocidade de homens e deuses?

Regresso ao meu íntimo

Ah! Se as minhas sílabas não tivessem despojos
dos meus dias…
mas têm! E é esse húmus que faz
com que me nasçam as garras
que cravo no fogo e no gelo!

Ganho coragem e avanço
Estendo o braço para tocar no ombro de Ricardo Reis
E ouso falar
- Dizes, Ricardo Reis
“não consentem os deuses mais que a vida”
Digo, eu, alguém e ninguém,
- Não consinto aos deuses menos que a vida!

Tremo
A minha mão está sobre o espaldar da cadeira
Atravessei Ricardo Reis! Atravessei-o!
Recuo atemorizado
Ricardo Reis volta-se e observa-me, circunspecto,
Não tenho forças para mais e grito:
- Eu sou o soalho que range!
E saio dali a correr



Soares Teixeira –13-06-2016
(© todos os direitos reservados)


(Nota: Ricardo Reis é um dos heterónimos de Fernando Pessoa).

Sem comentários:

Enviar um comentário