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sábado, 30 de julho de 2022

FRÁGEIS - SOARES TEIXEIRA

FRÁGEIS

Apetece-me escrever ao acaso; escrever como quem anda por aqui e por ali, sem rumo. Ir e não olhar para trás, ir pela rua de uma cidade, ou num trilho de floresta, ou junto à praia. Apenas ir, um passo à frente do outro, ir, uma palavra à frente da outra, ir, sem pensar em nada, ir, sem pensar onde vou, ir, sem saber porque vou, ir, apenas e tanto, porque sou levado. E o que me leva? Sim…, o que me leva?…

Às vezes o branco é preferível a qualquer cor, o branco é aconchegante. Aconchego-me no branco. Um branco liso, enorme, imenso, quase infinito. Branco, branco, branco, e um desejo que esse branco seja realmente infinito - infinita brancura. Recolho-me no branco como um bicho se recolhe num lugar secreto, por razões que só ele sabe. Visto-me de um branco, que não é roupa, não é sequer matéria, não existe, contudo, é branco – posso afirmá-lo.

Vai-te coisa quase centopeia, coisa chamada ’explicação’. Aconteceu. Não a mim, mas a alguém que muito estimo. O quê? Porquê? Pouco sei. Mas esse pouco é muito. Ah! Esta porra deste mecanismo humano!...

Caminhar, caminhar, caminhar, ao acaso. Escrever, escrever, escrever, ao acaso. É Verão, está um lindo dia de sol, aquilo que é familiar convida, aquilo que é novo convida, o mundo convida. O mar e o céu continuam unidos, e com a mesma voz, convidam, com os mesmos braços estendidos, convidam.  Porque falo eu no branco? Porque venho eu dizer que o branco é aconchegante? Melhor continuar a caminhar, caminhar, sem rumo certo, passo atrás de passo, palavra atrás de palavra, caminhar sem mapa. Está ali uma esquina é nela que agora vou virar - porquê? Sei lá! Porque sim! – agora vou por aqui, agora vou por aquela rua, passo a passo, palavra a palavra. Apanhei uma flor não sei já onde; se num canteiro, se junto a um muro velho, se da mão de uma pessoa amiga (o mais provável) – apanhei-a e vai comigo, e eu vou com ela e talvez seja essa flor (é certamente) a razão de eu hoje e agora me apetecer ir, passo a passo, por aqui e por ali, ir simplesmente, palavra atrás de palavra.

Quando era miúdo sonhava muitas vezes que voava, sem peso, como que na posse de uma qualquer antiquíssima faculdade, presente nos seres humanos, um vestígio, mas que em mim, de vez em quando surgia em toda a sua plenitude e…, voava. Depois, acordado, recordava-me com agrado desses sonhos e pensava que seria interessante eu voar; voar a sério, na realidade das coisas palpáveis, como os relógios e as árvores e o mar. Hoje, agora, a minha dimensão perante a fragilidade do maquinismo que somos encolhe-me, reduz-me o tamanho, sinto-me um miúdo, e olho-me de fora, e olhando-me, vejo-me, escondido a um canto, de cócoras, triste e sem vontade de voar. Mas eis que o miúdo se levanta, aponta-me o dedo e diz: “Tu ainda gostas de voar! Tu voas”. Bom, verdade seja dita, o miúdo tem razão. É verdade: às vezes voo, abro as asas e voo. E também é verdade que gosto de voar acompanhado.

Seguro a flor entre os dedos, pelo caule, e faço-a girar. Com este movimento de rotação as cores regressam às suas respectivas casas, que são o mar, uma pedra, uma árvore, uma formiga, um pássaro, etc., etc, etc, - haverá fim? – e eu vejo-as regressar ao aconchego das suas habitações e sinto-lhes os sorrisos e os cheiros e consigo mesmo escutar alguns dos sons que produzem – murmúrios distantes, porém audíveis. E enquanto giro a flor entre os dedos caminho à beira-mar, com os pés dentro da água, e o meu olhar é o da saudade de um certo vento…, de uma certa luz…, de uma certa ousadia…, de uma certa pura poesia…

E falamos, eu e o miúdo, falamos sim, e dizemos à flor: Força! Força, Minha Amiga!

 

Soares Teixeira – 30-07-2022

(dedicado a uma Amiga que está a atravessar um mau momento  de saúde)

 

quinta-feira, 21 de abril de 2016

"FICAR LONGE" - Soares Teixeira



Há dias em que as palavras não querem ser oferendas ao pensamento e o que apetece é não pensar em nada, absolutamente nada. Para quê pensar se tudo é irreconhecível? Antes o vazio, o nada. Lá ao menos não há sede de sangue, nem cavalos atravessados por lâminas de medo, nem gargantas onde serpentes celebram a morte de veias livres. O vazio….. o nada….. sem centro ou periferia, sem começo ou fim, sem luz ou sombra ….. o vazio ….. o nada ….. apenas ….. e tanto. E é tanto o que existe quando a respiração pode ser leve, leve, leve, levíssima, mais leve qualquer punhal a aguardar a hora de ser riso de hiena a celebrar traição. Ficar numa ausência, num tempo incerto, num espaço ocupado não pelo corpo mas pelo espírito – liberto de todos os caminhos, de todas as origens, de todo o horizonte. Ficar longe, bem longe do hálito de latrinas vestidas de seda.



Soares Teixeira – 21-04-2016
(© todos os direitos reservados)

sábado, 9 de abril de 2016

"O MECANISMO" - Soares Teixeira




Às vezes penso se seria bom ter vontade de perguntar à minha ausência a que fogo erguerei um dia a taça de alabastro transparente e logo digo a esse pensamento que se vá porque a minha sede é de agora; a minha sede é ser cacho de uvas nas manhãs e gesto em arco na celebração das noites; a minha sede é ser viva nudez da sede e som de violino na linha do horizonte. Perguntar o indecifrável ao indecifrável é habitar o inabitável e consagrar-me ao esquecimento de mim. Negação, pois! Não, não terei essa vontade. A única vontade que quero ter é a de ver palavras a florir nas veias por onde os meus dias correm. Nem que seja um “Bom dia dona formiga, bom dia senhor Sol”. Essa é a única vontade que quero ter, é a única folhagem em que quero ser pássaro, o único vértice onde quero acumular os meus instantes, a única esteira do meu navio. Para quê perguntar o que quer que seja à minha ausência? Por volúpia de dúvida? Por ânsia de apoteose? Melhor subir às cavalitas do tempo e agitar os braços a saudar os centauros que correm pelos bosques inquietando árvores e gotas de orvalho. A arte de ser rio e relâmpago – isso sim… nisso vale a pena pensar, nisso vale a pena ser pensamento. A minha ausência que fique… ausente. E no entanto… enquanto lavro o terreno do agora negando qualquer semente que não seja a dos momentos recém-nascidos em mim trabalha o imperscrutável mecanismo do sentir e, quer queira quer não, sinto na palavra negação uma praia-sílaba igual à que existe nas palavras criação e evolução.



Soares Teixeira – 09-04-2016
(© todos os direitos reservados)

domingo, 6 de março de 2016

"HOJE ESTOU ASSIM" - Soares Teixeira




a poesia poderá estar nos misteriosos acordes de um piano transparente, nos súbitos frutos libertos de todos os princípios e de todos os fins, nos gritos dilacerados das tempestades, na chuva que cai sobre telhados de cidades onde a lentidão das noites torna fantásticos os seus recantos mais infectos, na insónia de rios que a todos os instantes passam pelos gestos com que os barcos os afagam, no estrépito de cor de flores silvestres, no inexplorável ócio com que a névoa se afasta de caminhos guardados no extremo da fragilidade, no ondulante e aveludado silêncio com que as algas dizem que sim e que não a peixes submersos em pensamentos surpreendentes e jamais acessíveis a pássaros de asas guardadas em casacos cinzentos. Sim talvez a poesia ande por aí… talvez esteja por aí, a poesia… na vertigem, na viagem, no murmúrio, nas lâmpadas e nas rosas, nas coisas todas, na matéria e na antimatéria… talvez ande por aí – anda certamente… anda. Que ande! A poesia que neste momento eu quero é aquela que está no olhar de um cão quando sabe que o seu amigo de duas patas morreu. Essa é a poesia que eu quero. Mais nada. Hoje estou assim. Prometo a mim mesmo que amanhã a mágoa já não será cigarra. Por agora mais não posso fazer.



Soares Teixeira – 06-03-2016
(© todos os direitos reservados)

sábado, 21 de fevereiro de 2015

"O LIVRO" - Soares Teixeira




Guardo um livro no bolso do olhar. Às vezes, quando deixo que em mim habite a ausência dos nomes ou quero ser um destino longe da assinatura de todas as coisas, abro-o. Pode acontecer que na cauda de um grito de gaivota venham sussurradas as palavras “és meu irmão”, pode acontecer que uma nuvem me segrede “sou a tua canoa”, pode acontecer que um rio se erga sobre a minha cabeça para me observar e me diga “segue-me até aos astros”. Praias, montanhas e desertos; lanço-os dentro do peito como búzios sobre a areia de uma praia e tudo o que não sei são amuletos que coloco ao pescoço do meu silêncio. Nessas alturas começo-me numa ardósia de espaço e se me tornar árvore e dos meus ramos nascerem frutos isso não me surpreende – entrego-os aos pássaros do inominável. Sei que as galáxias não têm todo o tempo da eternidade mas às vezes deixo-me ser eterno num segundo de paz.



Soares Teixeira – 21-02-2015
(© todos os direitos reservados)