Álvaro Velho do Barreiro – primeiro jornalista português
José Vitor Graça Teixeira
(Pseud. Literário: Soares Teixeira)
As crónicas de historiadores da Antiguidade que dão
voz aos relatos do Almirante Fenício Hanão e do grego Píteas, ousados
navegadores mediterrânicos que se aventuraram até às costas africanas e
às ilhas nórdicas, exerceram durante largo período de tempo um fascínio
quimérico sobre sucessivos povos. Igualmente assombrosas as descrições
presentes no paradigmático Livro das Maravilhas de Marco Polo
levaram a que os relatos do mercador Veneziano sobre o fabuloso Extremo
Oriente tivessem tido o efeito de uma voz a ressoar na Europa Medieval.
As literaturas resultantes destas viagens, apesar do seu inegável
contributo para o alargar dos limites do conhecimento humano, estavam,
porém, substancialmente subordinadas a uma percepção filtrada por razões
teológicas. A visão espiritualizada do homem e das coisas assente em
conceitos geográficos ptolemaicos, muitos deles erróneos, mas tornados
artigos de fé, levou durante séculos a elaborações místico-filosóficas,
com descrições muitas vezes surrealistas que contribuíram para que
grande parte da face do mundo permanecesse oculta por véus de mistérios
intransponíveis.
Nascido em rudes terras, Portugal cresceu e foi
cumprindo o seu destino mítico. O conceito de Império de Cristo
transformou-se em estratégia factual. Monges e cavaleiros, trovadores e
povo acreditaram na ideologia de um destino marcado pela vontade divina.
Acreditaram ter sido os escolhidos por Deus para uma obra messiânica e
identificaram-se com o sopro do Espírito Santo para, numa odisseia
jamais vista, dilatar "A fé, o Império e as terras viciosas",
como haveria de cantar o sublime Camões. À medida que, pela acção das
armas e da política, Portugal impunha as suas fronteiras, a Língua
Portuguesa acompanhava esse processo de afirmação e protagonismo. A
proclamação por D. Dinis em Maio de 1289 de que todos os documentos
emitidos pela chancelaria régia deveriam ser redigidos em português
constitui um passo fundamental desse processo de maturação. A notável
acção de pedagogia social exercida pelos esclarecidos Príncipes da
Ínclita Geração, D. Duarte e D. Pedro que, em obras como a Ensinança de Bem Cavalgar a Toda a Sela, o Leal Conselheiro, ou a Virtuosa Benfeitoria
mostram o seu empenho em dotar a pátria de valores éticos e morais,
representa outra grande referência. Igual destaque para Fernão Lopes
que, encarregue de edificar as fundações da memória colectiva, usou de
uma grandiosa visão para compreender o todo colectivo nacional, elevando
a literatura portuguesa à monumentalidade.
Nessa marcha evolutiva a literatura de viagens
constitui uma etapa de suprema importância. Representa a passagem de
testemunho do homem essencialmente crédulo para o homem essencialmente
inteligente, o declínio da mentalidade medieval e o emergir do
pensamento crítico e da ciência moderna, o encontro com o Outro, a visão
planetária.
O manuscrito de Álvaro Velho do Barreiro referente à
primeira viagem de Vasco da Gama à Índia constitui um dos documentos
cimeiros dessa literatura, não só pelo seu carácter precursor do género
literário em si, como também pela vibrante e sedutora originalidade com
que o mareante nos relata aquela que foi uma das maiores aventuras da
história da humanidade. Através de uma ardente auscultação da realidade e
transposição da matéria observada e vivida para um modelo discursivo
inédito Álvaro Velho afasta-se em absoluto do abstracto e da alegoria
para se tornar repórter de acontecimentos quotidianos por si vividos.
Definitivamente para trás ficam narrativas onde a concepção ptolemaica
do mundo fazia aos Velhos do Restelo, parecer distante, mesmo
inatingível, a conquista dos mares "Ainda além da Taprobana" e o alcançar de terras "Em busca da espiçiaria".
A forma notável como através de um discurso onde
pontuam escassos ornatos subjectivos, Álvaro Velho, numa correcta
adequação cronológica, conseguiu a convergência de questões de natureza
antropológica, socioeconómica, etnográfica, psicológica e científica,
faz com que ainda hoje os seus textos se mostrem atraentes e
imprescindíveis. Foi o seu posicionamento como observador constante e
testemunha participativa que lhe permitiu optar por um tipo de escrita
sem precedentes onde a noção de espaço e de tempo se assumem como
categorias nucleares para uma objectividade de pensamento emergente da
desestruturação do sistema e da cosmovisão medievais. Alguns
consideraram como fraco o estilo literário usado por Álvaro Velho. No
entanto, o manuscrito do mareante da odisseia gâmica deverá analisado
mais por aquilo que configura na história de Portugal do que pela
componente estética. Fazendo o seu enquadramento dentro de uma ideologia
de aventura e conquista do futuro cuja acção o autor, é lícito
admiti-lo, deveria estar a sentir em alto grau, não será erróneo inferir
que a sensibilidade de Álvaro Velho se tenha deliberadamente
concentrado mais na essência noticiosa dessa mesma acção do que na forma
léxico-gramatical da sua redacção. Uma sensibilidade voltada, pois,
para os factos concretos como consequência de providencial apelo
interior a um método cognitivo. Este tendo como objectivo a apreensão e
registo da realidade factológica que acompanhasse a estratégia de
vanguarda da grande e vertiginosa aventura humana levada a cabo pelos
Portugueses no seu desígnio de, através da expansão de um processo
mercantilista, criar o Estado Ecuménico de Deus de que o Rei de Portugal
seria o grande impulsionador.
Pelo seu testemunho, único e de vibrante
originalidade, o manuscrito de Álvaro Velho, descoberto em 1834 por
Alexandre Herculano no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e levado pelo
grande historiador para a Biblioteca Pública Municipal do Porto onde se
encontra arquivado com o número 804, tornou-se ao longo da história
referência preciosa para investigadores das humanidades e das ciências
positivas. Cronistas como Valentim Fernandes, Fernão Lopes de
Castanheda, Damião de Barros, Gaspar Correia e Historiadores e
investigadores como Diogo Köpke, Alexandre Herculano, Franz Hümmerich,
Ravenstein, Gago Coutinho, Luís de Albuquerque, Joaquim Barradas de
Carvalho e José Caro Proença serviram-se do manuscrito de Álvaro Velho
para aturados estudos da épica viagem, que representou simultaneamente o
consolidar da ousada conquista dos mares do Atlântico Sul e a destemida
incursão no Oceano Índico onde é alcançado o velho e mítico mundo
Asiático.
O notável documento que nos relata a epopeia do Gama
tem recebido ao longo da história classificações várias sendo as mais
comuns de diário ou roteiro. Quanto à designação de diário de bordo
assinale-se que estes são textos onde os pilotos apontam diariamente
todas as informações de interesse para a navegação tais como as
distâncias percorridas, altura do Sol e das estrelas, estado do mar ou
leituras da declinação da agulha, indicadores vários da área onde o
navio se encontra, etc. No que concerne à segunda designação, roteiros
são textos náuticos de ajuda à navegação que os marinheiros portugueses
começaram a escrever no século XV e dos quais se socorriam nas viagens.
Nesses textos deveriam estar indicados os principais portos, as
distâncias que os separavam bem como acidentes costeiros e linhas de
rumo que os uniam, informações essas muitas vezes coligidas para livros
de marinharia onde os pilotos podiam encontrar aquilo que lhes
interessava para a prática da navegação.
Álvaro Velho do Barreiro, para além do registo de
informações atinentes aos roteiros e aos diários de bordo relata outro
tipo de acontecimentos nomeadamente os ocorridos em terra, nos quais
tomou parte activa. Refiram-se como exemplo os vários desembarques na
ilha de Santa Helena, o pitoresco episódio da aventura de Fernão Veloso,
a sua participação na exploração do chamado "Canal Norte da Ilha de
Moçambique" ou ainda os importantes acontecimentos a que assistiu na
Índia destacando-se entre eles a recepção de Vasco da Gama pelo rei de
Calecut.
Mais correcta será a designação de Jornal. Joaquim Barradas de Carvalho em À la recherche de la Spécificité de la Renaissance Portuguaise diz-nos: "Em primeiro lugar o jornal da Primeira viagem de Vasco da Gama a Índia,
em 1497-1499, escrito por Álvaro Velho, certamente o mesmo Álvaro Velho
do Barreiro de que nos fala Valentim Fernandes numa das suas
descrições" (p.275) e mais adiante: "Enfim, não esquecer que Valentim
Fernandes, no fim da sua obra (ps 96 do manuscrito), cita Álvaro Velho, o Álvaro Velho do Barreiro autor do Jornal da primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia" (p.339).
Para melhor apreensão da magnitude do manuscrito de
Álvaro Velho torna-se pertinente atender à definição de dois conceitos
jornalísticos: o conceito de notícia e o de lead. Silva Araújo em
"Vamos falar de jornalismo" citando alguns autores apresenta-nos estas
definições de notícia: "Narração, na forma mais objectiva possível, de
um facto verdadeiro, inédito e de interesse geral (Domenico de Gregorio,
Metodologia del Periodismo), " É a comunicação de factos novos surgidos na luta pela existência do indivíduo e da sociedade " (Emílio Dovifat, Periodismo, I vol.),
(p42). Fazendo a articulação com a notícia diz-nos o mesmo autor sobre
o lead: "A notícia é a narração de um acontecimento. No lead
pretende-se dar o mais importante desse acontecimento, respondendo, pelo
menos, a quatro perguntas fundamentais: quem foi? o que aconteceu? onde
aconteceu? quando aconteceu?", (p49).
Estas definições levam a que o notável documento deva
ser considerado como um verdadeiro trabalho jornalístico. Um trabalho
escorreito e eficaz pelo modo como informa e cativa. Um marco no
processo evolutivo da história da literatura portuguesa.
José Caro Proença na sua notável obra "Encobrimentos nos Descobrimentos"
atribui ao manuscrito de Álvaro Velho talvez a mais clarividente
classificação. Diz o investigador: "Jornal noticioso, quiçá o seu
verdadeiro género literário-semântico" (vol II p13) e mais à frente
adianta: "Não existindo outro documento anterior ao mencionado Ms 804,
pelo seu género literário muito justamente consideramos o seu autor
presuntivo, Álvaro Velho do Barreiro, o precursor do jornalismo moderno,
português e universal, emergente das viagens transoceânicas de longa
duração e grande extensão" (vol II p18).
Mas, tomando como referência o método de decomposição
do manuscrito em excertos noticiosos proposto por José Caro Proença,
analisemos alguns dos relatos de Álvaro Velho:
"Partimos de Restelo um Sábado, que eram oito dias
do mês de Julho da dita era de 1497, nosso caminho, que Deus Nosso
Senhor deixe acabar em seu serviço, Amen".
Nestas escassas palavras Álvaro Velho condensa todos
os elementos necessários à notícia. Através de uma notável
comunicabilidade fala objectivamente e com verdade de um acontecimento,
actual e com interesse, atributos presentes ao longo da empolgante
reportagem sobre a odisseia gâmica.
Decomposição da notícia:
Quem foi: Os tripulantes da frota de Vasco da Gama
O que aconteceu: Partiram
Onde aconteceu: Restelo, Lisboa
Quando aconteceu: Sábado, oito de Julho de 1497
Ainda uma outra passagem do manuscrito:
"Em vinte e cinco dias do dito mês de Novembro, um
Sábado à tarde, dia de Santa Catarina, entrámos em a Angra de São Brás,
onde estivémos treze dias porque nesta angra desfizemos a nau que
levava os mantimentos e os recolhemos aos navios".
Fazendo a decomposição da notícia, temos:
Quem: Os marinheiros da frota de Vasco da Gama
O quê: Desmantelaram a nau que levava os mantimentos
Onde: Na Angra de São Brás
Quando: Vinte e cinco de Novembro, Sábado à tarde, dia de Santa Catarina
Nesta notícia, estruturada de uma forma precisa,
Álvaro Velho relata-nos um acontecimento que elemento fundamental na
política portuguesa: o sigilo. Portugal, como grande nação na vanguarda
da investigação científica mantinha particular atenção aos seus
segredos.
Álvaro Velho relata-nos assim a partida de Melinde:
"E (de Melinde) fomos em leste a demandá-la (Calecut). E aqui é a costa de norte e sul (do mar da Arábia),
porquanto a terra aqui faz uma muito grande enseada e estreita, segundo
nós achámos notícia, há muitas cidades de cristãos e mouros e uma
cidade que se chama Cambaia e seiscentas ilhas sabidas e onde está o mar
Ruivo e a casa de Meca".
Quem: Os marinheiros da frota de Vasco da gama
Que: Navegaram em leste
Onde: Mar da Arábia
Quando: Terça-feira, 24 de Abril de 1498
Nesta notícia, mais uma vez objectiva e sucinta,
Álvaro Velho faz referência ao rumo tomado pelos navios de Vasco da Gama
quando saíram de Melinde. Descreve ainda (achámos notícia, sic.)
o que lhe foi noticiado pelo piloto árabe cedido pelo rei de Melinde, o
presumível Ahmad Ibn Mãjil, bom conhecedor daquelas paragens.
Se através da análise do manuscrito de Álvaro Velho
surge lícito, como procurámos demonstrar, que o referido documento seja
considerado o arquético do jornalismo moderno, uma outra correlação se
pode estabelecer. A de ter sido o notável documento substrato de um dos
maiores monumentos literários da história da humanidade: os Lusíadas.
Esta forte intuição poderá ser consubstanciada pelo
facto de ter Camões frequentado as escolas menores do convento de Santa
Cruz, de que seu tio D. Bento de Camões era cancelário da Universidade.
Aí, poderá ter tido, tal como outros letrados, a possibilidade de
consultar o manuscrito de Álvaro Velho, testemunha participativa da
épica viagem de Vasco da Gama.
Esta teoria é defendida com notável brilho por José
Caro Proença no seu livro V "Encobrimento nos descobrimentos –
Poetização da Viagem de Vasco da Gama à Índia segundo o manuscrito de
Álvaro Velho do Barreiro" onde o autor nos propõe uma "adequação
semiológica entre os Lusíadas (império dos significantes –
principalmente, segundo a edição de Manuel Paulo Ramos) e o entendimento
da leitura comparada com o Ms. Álvaro Velho do Barreiro (corpus –
território de significados) " (em Memória explicativa e justificativa
pIX).
Depois de quinhentos anos o manuscrito de Álvaro
Velho do Barreiro, continua imbuído ao mais alto grau de carácter de
actualidade e estímulo constituindo marco fundamental na História da
Literatura Portuguesa.
Bibliografia
ALBUQUERQUE, Luís de " Relação da Viagem de Vasco da Gama – Álvaro
Velho", introdução e notas de Luís de Albuquerque, Comissão Nacional
para as Comemorações dos Descobrimentos Marítimos Portugueses –
Ministério da Educação, Lisboa 1989.
CARVALHO, Joaquim Barradas de "A la recherche de la specificite de la
renaissance portugaise" Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1983
SEIXO, Maria Alzira "Poéticas da viagem na literatura", Edições Cosmos, Lisboa, 1998
CRISTOVÃO, Fernando "Condicionamentos culturais da Literatura de Viagens", Edições Cosmos, Lisboa, 1999
BOUCHON, Geneviéve "Vasco da Gama", Lisboa, TerraMar, 1998
SARAIVA, António José ; LOPES, Oscar "História da Literatura Portuguesa", Porto Editora, Limitada, 1976
PROENÇA, José Caro "Encobrimentos nos Descobrimentos" – Livro II, Câmara Municipal do Barreiro,1998
PROENÇA, José Caro "Encobrimentos nos Descobrimentos" – Livro V, Câmara Municipal do Barreiro, 1996
BOND, F. Fraser "Introdução ao jornalismo: uma análise do quarto poder em todas as suas formas", AGIR, Rio de Janeiro, 1962
ARAÚJO, Silva "Vamos falar de jornalismo", Direcção Geral da Comunicação Social, Lisboa, 1988
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Comunicação apresentada no VI Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, Rio de Janeiro (8-13 de Agosto de 2001), e publicado nas respectivas Actas.