sexta-feira, 1 de agosto de 2014

"VOZES" - Soares Teixeira








As vozes das casas
falam ao ouvido do mar
casas antigas
onde durante gerações
uma raça de gente foi lida pelo barcos
que na praia
como animais sem sono
olhavam para os olhares e para os gestos
dos seus donos
e tentavam ler-lhes lá ao longe
no horizonte da retina
quais os seus pensamentos
e depois ouviam-nos, transformados em palavras
de formas caprichosas
“vamos, que o mar promete”
“mar dum raio, é melhor ficar em terra”
“é dia de cuidar das redes e dos barcos”
“safámo-nos de boa!
“mas porque é que eles não chegam?”
(ah! gargantas sem sexo nem idade!)
todas elas palavras de timbre calejado
sílabas salgadas e com cabeça de espuma
consoantes e vogais talhadas ao jeito das ondas
e do horizonte e da única certeza: a incerteza
ao lado dos seus donos os barcos viam mulheres
estranhas criaturas com olhos que pareciam mares
e corpos de animais feitos para parir ilhas
umas como elas outras como eles – os donos dos barcos
mas quando estavam na praia
os barcos também olhavam para o mar
e sabiam os nomes dos outros barcos, dos peixes,
dos lugares e das gentes que ele fez suas
e sabiam isso porque tinham o dom de ler nas ondas
As casas estão vazias
já não há guelras nos beijos, nem escamas nos abraços
nem redes nos gestos, nem barcos nos olhares
já não há nada
nem telhados onde se adivinhavam constelações
nem portas que as crianças cruzavam como peixes luminosos
nem janelas a cheirar a algas
há buracos abertos nas paredes como órbitas vazias
de caveiras alheias aos dias carregados de olhares
e as constelações são o único tecto do abandono
O vento sopra e para ele não há noite ou dia
sopra e como um peixe cego e surdo
adianta-se na praia sem barcos e entra nas casas
e então
então acontece aquilo que as constelações jamais poderiam imaginar
o vento deixa de ser um peixe cego e surdo
e passa a ser um peixe que vê tudo o que flutua no tempo
e ouve tudo o que se desprende das casas abandonadas
“são as vozes das casas a falar ao ouvido do mar”
diz o vento
àquele barco lá ao longe
que lentamente passa e ao passar se recorda
de casas assim, como aquelas
mas num outro lugar



Soares Teixeira – 01-08-2014
(© todos os direitos reservados)

Sem comentários:

Enviar um comentário