segunda-feira, 31 de março de 2014

"POEMA AO AUTOMÓVEL" - Soares Teixeira




Fotografia de Sven Storbeck





Foi no meu automóvel
que nos enamorámos
pelo rumor da distância
aquela que se adivinhava
nos teu olhos de subtil volúpia
e nos meus de pavão real
e aquela outra
a que unia lugares
a nascer dos nossos dedos juntos
num ponto no mapa
dedos que escorriam e sorriam
aventura
Vamos aqui? Vamos!
e lá íamos
abertos ao sempre inicial
som do motor
sobre quatro rodas que rolavam
como se inventassem a estrada
sempre com a música do rádio
a saudar rectas, curvas e colinas
que nos acenavam como criaturas
que o meu automóvel libertava
do seu anónimo tédio
Às vezes o volante queria ser teu
porque não?
gostava de me sentir sultão
conduzido por uma gazela encantada
De noite os faróis eram estrelas
e a tua cabeça uma lua
colada ao grande planeta
que era o meu ombro
Quando parávamos
para um beijo à beira de uma falésia
uma caminhada por entre flores campestres
ou um lanche no café de uma praça antiga
ele ficava familiarmente a observar-nos
silencioso, contente
e também um pouco vaidoso
retribuíamos-lhe com um sorriso
lembro-me que uma vez lhe deste um beijo
e eu com ciúmes te prendi pela cintura
ele também se lembra disso
o meu automóvel



Soares Teixeira – 30-03-2014
(© todos os direitos reservados)

domingo, 30 de março de 2014

"CONSTRUÇÃO" - Soares Teixeira








Assento as palavras
pedra a pedra
até as que paredes da casa ficam completas
depois
percorro as salas e olho
para o lugar vazio das janelas
e o meu olhar passa a ser as janelas
em seguida olho para o tecto que não existe
e sonho com um tecto feito de memórias
e sem passaporte
e o meu sonho passa a ser o tecto
finalmente dirijo-me ao quarto
deito-me numa cama de trigo imaginado
e abraço-te com a mesma luz
que víamos nas paredes brancas
ao entardecer
quando numa certa primavera
nos amámos como deuses sem erro



Soares Teixeira – 28-01-2013
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 26 de março de 2014

"VIAGEM" - Soares Teixeira




Museu de Olympia - Grécia


 

Saberão estas estátuas
que o ar que respiram agora
é o mesmo que eu respirei outrora?

Não sei que palavras
pelos séculos dos séculos
foram saindo da boca
dos que diante delas
se tornaram o fim de um caminho
de sandálias, terra e cavalos
e o início de um outro
de olhares com asas de ouro

Não sei em que gestos
se transformaram os corpos
que através das páginas do tempo
diante delas foram fios
que bordaram mitos

Sei que aqui
diante destas estátuas
o meu olhar de gestos sem instante
partilha o mesmo rio de espanto
e vai desembocar antigo e fresco
no mesmo encanto



Soares Teixeira – 24-03-2014
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 24 de março de 2014

"AS PORTAS DO OLHAR" - Soares Teixeira








No eterno início
um véu a flutuar num céu
meu teu
nosso

Vem o momento
em que descobrimos
que o mundo está completo
depois de abrirmos as portas do olhar
e caminharmos até ao lugar leve
dos lábios da claridade adormecida
onde com o sorriso dos libertos
ficamos fáceis a nós próprios
tornando-nos parte desse início
desse véu
meu teu
nosso
que flutua
na secreta origem da palavra
frágil morada de ausências habitadas
pelos mistérios de instantes por acontecer
um véu sem princípio sem fim
sem matéria
límpido
um véu a flutuar no ar
o véu vivo dum pensamento
que atravessa o tempo
um eterno primeiro momento
de descoberta
ainda em vagar de fogo frágil

Depois a sagrada chama
a incandescente alegria
a poesia



Soares Teixeira – 23-03-2014
(© todos os direitos reservados)

sábado, 22 de março de 2014

"CELEBRAÇÃO" - Soares Teixeira









Sagradas e sábias as árvores quase não falam mas ao longo dos seus troncos há palavras ditas em surdina, no limiar de um silêncio anelante e vertical e audíveis apenas pelo horizonte dos que partilham a nudez das cores e a órbita de astros iniciais. Puro segredo, secreto prodígio, plena satisfação sentir-vos… árvores! árvores! árvores! árvores percorridas por tanto murmúrio em flor, sempre recém-nascidas do milagre, intacto assombro na veia do instante, arte de inaugural enigma… árvores! meu êxtase, meu excesso sem fim, minha placidez, minha espiral de imensidade. Árvores! meu amparo, contínua lucidez, que bom ter-vos a meu lado - quando julgo que sou inteiro e inquebrável, quando tenho de reunir os meus pedaços, quando tenho de chamar pela última ânfora dos meus instantes, quando tenho de largar a pele para voltar a ser início -, que bom partir do meu gesto e depois abraçar-vos e assim chegar à minha alma. Deusas das ofertas matinais e das celebrações noturnas, deusas de formas puras, deusas de vontade sem máscara, deusas que dançam no meu contentamento, deusas sorridentes e de cabeça erguida e de olhos postos nas viagens dos pássaros, das nuvens e dos sonhos, deusas do incrível, da aliança; sim, beijo-vos, beijo-vos como se me banhasse no último mar dos tempos.
Agora vamos dar as mãos, eu, e tu, e tu, e tu também - nós, os que pertencemos à raça dos golfinhos siderais. Vamos rodear a árvore e nela celebrar todas as árvores. Magnífica sede de revelação; olhar as árvores e esperar as suas palavras, como penumbra que aguarda a luz. Sim ao círculo que somos. Fantástica ascensão; respirar o insondável amadurecimento da sílaba, sentir a carícia da palavra a percorrer a superfície do sentir, para depois observarmos, deslumbrados, a prometida unidade, ébria de além. Sim ao círculo em que nos tornamos. Árvores, por vós emergir, por vós descobrirmo-nos; plenitude na página, sem peso, do ser; intensa unanimidade do mistério; solene transparência a vibrar no instante. Sim ao círculo com que giramos. Árvores! amor com vontade de viver em nós, os pássaros, os que atravessam a espessura dos dias e se tornam azul entregue ao sonho. Sim ao círculo com que nos elevamos. Amor das árvores por todos os que por elas renascem, por todos os que nelas se libertam - amor retribuído oh árvores Sim ao absoluto das vossas palavras.



Soares Teixeira – 21-03-2014
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 20 de março de 2014

"LEVEZA" - Soares Teixeira










Descalço pela primavera
ando de baloiço
num quase poema
como uma criança a brincar
com os ângulos das distâncias
as palavras ficam para trás
Fecho os olhos
as minhas mãos seguram as cordas do baloiço
sou o vaivém da minha leveza
Sinto-me acaso oculto
e que uma ideia em flor
me observa
estendo-lhe os dedos transparentes
coloco-a na lapela do pensamento
e vou para um lugar
onde os meus celeiros ficam mais fartos
e os meus veleiros com as velas mais enfunadas
lá não preciso explicar
que sorriso pode significar tapete voador
que gesto pode significar abóbada
que amor pode ser árvore
ou que eternidade pode ser instante
os sonhos entendem


Soares Teixeira – 20-03-2014
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 18 de março de 2014

"BRINCADEIRA" - Soares Teixeira









Agora eu sou a Terra
e tu brincas
à volta da minha cintura
e bates palmas e dizes
“Um dois três
cheia de prata cheia de luz
cá estou eu outra vez”
depois sou eu
estendo os braços
dou três passos
e digo
“Um dois três
cheio de mar cheio de ar
cheio de mim também
cá estou eu
neste lugar e mais além”
e assim pela noite fora
um dois três ora tu
um dois três ora eu
Enlouqueci?
talvez
renasci?
tão bom
tornei-me criança?
saudades
É em criança
que melhor se brinca
melhor se flutua
não achas Lua?



Soares Teixeira – 19-03-2014
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 17 de março de 2014

"PALAVRA ANFÍBIA" - Soares Teixeira









Da cantilena das ondas nasce a palavra anfíbia e nela viaja aquele que olha para lugares distantes, para tempos remotos, e vê… vê! vê: grupos de raparigas dançarem uma dança de roda em torno de antiquíssimas oliveiras; cães que olham, como pessoas, para um velho sábio sentado num mercado e que fala pausadamente enquanto descansa de uma viagem que muitos pensam ter começado com os deuses e que acham não acabará nunca; homens com três quartas partes de vida passadas a cavalgar entre estepes e céu; outros homens com o mesmo tempo de vida entre céu e mar; outros ainda com esse mesmo tempo de existência entre sangue e vinho; outros toda a vida entre outros que julgam conhecer mas não conhecem; mulheres grávidas desses homens - dessas pedras a rolar pelos caminhos - e grávidas de mulheres que, como elas, serão mel e torres e vozes ao vento, rogando que ele se abra e receba os seus sonhos e as suas danças de roda. Nua cantilena com mais refrões de perguntas que refrões de respostas, cantilena sem rosto e com tantos rostos. Aqui se erguerá o palácio, diz um rei; aqui dormirei, diz um pastor. Aqui se erguerá o templo, diz um sacerdote ao tocar no solo com o seu bastão de ouro; sim, aqui é bom, diz ao pássaro o curandeiro, erguendo ao alto o seu colar de búzios. E todas estas palavras ou são escutadas pelo mar ou pelo vento que as vai dizer ao mar e o mar guarda-as dentro de si e os seus ombros e as suas bocas – que são as ondas – levam-nas aos ouvidos das praias. E a cantilena das ondas ascende à respiração daquele que olha o horizonte e na palavra anfíbia vai ao encontro, vai ver acontecer, vai acontecer… naquilo que foi, é, e será.




Soares Teixeira – 16-03-2014
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 10 de março de 2014

"SIGO O CAMINHO DAS CIGARRAS" - Soares Teixeira













Sigo o caminho das cigarras
nada detém os pássaros
que voam dentro das minhas veias
nem os rios que correm
das minhas pálpebras
Não sou um sonho
mas também não sou real
vou poisando nos segundos
como um pardal
íntimo das abóbadas do riso
dos ombros da luz
e da noite que escuta o desconhecido
Quando não estou num galho de tempo
desenho céus marinhos
em paisagens que ganho à claridade
Sigo o caminho das cigarras
levo no peito
a volúpia da liberdade




Soares Teixeira – 09-03-2014
(© todos os direitos reservados)



"CAMÉLIAS" - Soares Teixeira








Camélias
elegância viva
a voar no poema
canção vegetal
em repouso no belo
cântaros de paz
de onde brotam
as sílabas do amor
arte
de bem vestir os dias



Soares Teixeira – 05-03-2014
(© todos os direitos reservados)



"NO CASTELO DE GUIMARÃES" - Soares Teixeira







No Castelo de Guimarães
são tantas perguntas em que me transformo
que me acrescento ao granito e nele cresço
e como uma concavidade no espaço e no tempo
na flor do silêncio recebo o olvido
                  ebriedade
Sou o lugar dos nomes míticos
na minha respiração sinto a nitidez
de camadas de alianças e traições
de arcas pejadas de segredos e sangue
de espadas cobertas de cruzes e vozes
Do meu gesto surgem cavalos cobertos de cores
música a bater asas
gritos de estátuas jacentes
coroas a copularem coroas
olhos brasonados a selar pactos com o horizonte
Os degraus e as paredes oferecem-me um ar
que me quer ver
as torres e as ameias passam as mãos pelas minhas
e puxam-me
as portas e as janelas bebem olhares antigos
e olham-me
e os seus olhos são os de um vento carnal
Então foi aqui
digo, enquanto caminho
na longa galeria de mim mesmo
Sim, foi aqui
responde-me uma voz vinda do chão
Aqui Afonso sonhou Portugal



Soares Teixeira – 05-03-2014
(© todos os direitos reservados)



"ÂMAGO" - Soares Teixeira








sou
no rio que me atravessa
a viagem que começa
o retorno sem pressa

              sei
íntima gota de orvalho
escuto a voz das rosas
e passo a mão pelo céu

estou
na brisa que se expande
na praia que se estende
no mistério que me entende



Soares Teixeira – 24-02-2014
(© todos os direitos reservados)