terça-feira, 31 de maio de 2016

"SONO" - Soares Teixeira



Chego a casa cansado
com vontade de ser sono
tudo o que quero
é um lençol de água
e descer aos abismos do mar
e sonhar
com peixes de barbatanas de fogo
algas em indolente verticalidade
corais no silêncio das cores raras
sereias a dançar danças de roda
depois
descer mais fundo ainda
até à fenda de um vulcão submarino
e mergulhar no magma
até ao centro da Terra
onde tudo é tão impensável
e estranho e primordial
como os astros e o cosmos
e este tríptico dobrável que sou
o antes no painel da esquerda
o depois no painel da direita
e o agora no painel central
tríplice moldura
uma única obra
nunca compreendida



Soares Teixeira – 31-05-2016
(© todos os direitos reservados)

domingo, 29 de maio de 2016

"BANDEIRA" - Soares Teixeira



Hoje quero ocupar uma palavra
como se eu fosse um exército
ávido por tomar uma cidade
e erguer a minha bandeira

a minha nova bandeira

e a palavra que eu quero ocupar
a cidade sobre a qual eu quero lançar
todos os meus exércitos
essa cidade, essa palavra, é
alma
quero ocupá-la com um outro Eu
que tem de ser convocado
por nós
os dois do meu eixo
o que tem de ser derrotado
e o que tem de vencer

sim
ofereço-me à lanças
sim
sou lanças em ímpeto de conquista

pois faça-se
soem as trombetas
rufem os tambores
avance o das carnes rasgadas e o da armadura
avance a de cinza e o incandescente
avance o da agonia e o renascido
avance o vencido e o vencedor

sentes alma?
sentes esta lança
cravada no teu peito a sangrar?
sentes?
observa a outra extremidade
que vês?

é uma bandeira
uma nova bandeira
também é azul
também tem um pássaro a voar

Sangra alma
quantas vezes forem precisas

Sim
eu não desisto
e sabes porquê?
porque o pássaro não me deixa
viver sem lutar

 

Soares Teixeira – 29-05-2016
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 25 de maio de 2016

"A DANÇA DOS DIAS DO PÁSSARO" - Soares Teixeira



Porque os astros nos convidam a ser além
tragam tambores e fitas coloridas
e dancemos a dança dos dias do pássaro

Porque a luz nos convida para o eterno
tragam uvas no rosto e riso nos passos
e tragam lagos aos ombros e mil anos nas veias

Porque é tempo de vestir a nudez da hora
tragam a fala das madressilvas
e tragam colinas com patas de cavalo

Porque hoje os caminhos saltam do chão
tragam uma cigarra dependurada do sonho
e tragam colares de conchas ao pescoço do grito

Porque hoje é dia de em aves sairmos do gesto
tragam o amanhecer da liberdade
e tragam mantos de céu e desassossego

Porque hoje é o dia



Soares Teixeira – 25-05-2016
(© todos os direitos reservados)

"NO PARAÍSO" - Soares Teixeira



Vai ardendo o pavio
O círio diminui

Uma oração
para que alguém escute do outro lado?
quem?
Uma equação
para determinar probabilidades siderais?
com que variáveis?
Um poema
para que, sendo viajantes da palavra,
possamos voar com asas de luz?

Tudo em vão. Ilusão
porém inevitável
somos insatisfação

Entretanto
para nos recordar que estamos no Paraíso
o orvalho incorpora a noite
o coaxar da rã atravessa o lago
a árvore habita o luar



Soares Teixeira – 25-05-2016
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 24 de maio de 2016

"MODERNIDADE" - Soares Teixeira



Crescem-vos lâminas das unhas
saem-vos agulhas dos olhos
a língua bífida serpenteia no espaço
mas nada disso se vê
são amáveis
sabem ser carne da carne dos incrédulos
gostam de ser olhar do olhar dos sedentos
enquanto fazem da mentira a vossa verdade
e voam como abutres
sobre aqueles que já vos cheiram a morte

Devorai-vos uns aos outros
isto não está escrito em nenhum compêndio
mas está, por outras palavras,
todas as técnicas evoluem
e a manipulação das marionetas é um processo científico
que para além da comprovada eficácia
diminui o risco de sujarem a consciência que fingem ter
ou de tropeçarem nalguma voz inconveniente
ou de perturbarem o gesto com que celebram vitória
é uma questão de modernidade



Soares Teixeira – 24-05-2016
(© todos os direitos reservados)