sábado, 9 de abril de 2016

"O MECANISMO" - Soares Teixeira




Às vezes penso se seria bom ter vontade de perguntar à minha ausência a que fogo erguerei um dia a taça de alabastro transparente e logo digo a esse pensamento que se vá porque a minha sede é de agora; a minha sede é ser cacho de uvas nas manhãs e gesto em arco na celebração das noites; a minha sede é ser viva nudez da sede e som de violino na linha do horizonte. Perguntar o indecifrável ao indecifrável é habitar o inabitável e consagrar-me ao esquecimento de mim. Negação, pois! Não, não terei essa vontade. A única vontade que quero ter é a de ver palavras a florir nas veias por onde os meus dias correm. Nem que seja um “Bom dia dona formiga, bom dia senhor Sol”. Essa é a única vontade que quero ter, é a única folhagem em que quero ser pássaro, o único vértice onde quero acumular os meus instantes, a única esteira do meu navio. Para quê perguntar o que quer que seja à minha ausência? Por volúpia de dúvida? Por ânsia de apoteose? Melhor subir às cavalitas do tempo e agitar os braços a saudar os centauros que correm pelos bosques inquietando árvores e gotas de orvalho. A arte de ser rio e relâmpago – isso sim… nisso vale a pena pensar, nisso vale a pena ser pensamento. A minha ausência que fique… ausente. E no entanto… enquanto lavro o terreno do agora negando qualquer semente que não seja a dos momentos recém-nascidos em mim trabalha o imperscrutável mecanismo do sentir e, quer queira quer não, sinto na palavra negação uma praia-sílaba igual à que existe nas palavras criação e evolução.



Soares Teixeira – 09-04-2016
(© todos os direitos reservados)

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