A NOITE
A noite veio de dentro, começou a
surgir do interior de cada um dos objectos e a
envolvê-los no seu halo negro. Não tardou que as trevas
irradiassem das nossas próprias entranhas, quase que
assobiavam ao cruzar-nos os poros. Seriam umas duas ou três
da tarde e nós sentíamo-las crescendo a toda a
nossa volta. Qualquer que fosse a perspectiva, as
trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que, apesar de
a noite também se desprender das coisas, havia nela
algo de essencialmente humano, visceral. Como
instantes exteriores que procurassem integrar-se na trama
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da
tarde, num estertor, a emergir intermitentemente à
superfície das coisas. Foi nessa altura que a visão se
começou a fazer pelas raízes. As imagens eram sugadas a
partir do que dentro de cada objecto ainda não se
indiferenciara da luz e, após complicadíssimos processos,
imprimiam-se nos olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então
a custo a treva nasalada.
(Viseu, 29 de Setembro de 1957 - Bruxelas, 9 de Maio de 1995)
Sem comentários:
Enviar um comentário