domingo, 30 de novembro de 2014

"CESTO DE BÚZIOS" - Soares Teixeira








Às vezes
súbitas ressonâncias acontecem
e ficam a vibrar
como ecos de sinos
a espreitar de frestas de horizonte
serão hera de recordações
a trepar pelas paredes do momento?

Por exemplo
agora

acabou de chegar a uma praia da memória
alguém em estranho silêncio
caminha lentamente sobre a água
e o seu corpo também é mar
de veias salgadas
de onde vem? para onde vai?
que vento leva ao ombro?
que luz lhe traça uma linha no rosto?
segue-o uma ave
de corpo vazio
ferida por uma seta de nada
violenta coisa nenhuma
atirada por um instante a morder os lábios
vou na ave
alcançarei aquele outro em mim?

Indiferente
tudo está de passagem
no cesto de búzios que vou sendo



Soares Teixeira – 30-11-2014
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 25 de novembro de 2014

"PALAVRAS DE UM RIO" - Soares Teixeira




Maqueta do Monumento ao Antifascista de Aljustrel - Museu Jorge Vieira, Beja



Vou-te dizer algo
que ouvi um rio
dizer a uma árvore

Dizia o rio:

“É urgente sentir
nas veias, nos dentes, na dor
é urgente sentir!

que há um sol suspenso
nas manhãs não ditas
e que é por ele que temos
de lutar
e que é por ele que temos
de atravessar as nuvens negras

Para lá
do lagar de sombras
onde é preparado o vinho do medo
estão palavras
vivas
como crianças
a correr de braços abertos

Não há que temer a infância
mesmo vendo-nos
sentados numa rocha à beira do nada
e com sentimento de fim

Podemos chegar junto das palavras
e apresentarmo-nos assim:
‘Olá
sou armazém de noite
mar de chamas
flor sem chegar à praia da raíz
argila de intimidade última
boca dentro da sede
de outra coisa que haja em mim’

Talvez então aconteça
que uma dessas palavras crianças
liberdade
venha ter connosco
e nos puxe pela mão
para uma dança de roda
com muitas das suas irmãs

Talvez então
já de poema vestido
frontais à luz
belos
como um pássaro
rubro e destemido
possamos afastar as nuvens negras

Talvez então
sejam ditas todas as manhãs”

O rio era um velho
ainda de luta acesa no olhar
a árvore era eu
sem saber como continuar



Soares Teixeira – 25-11-2014
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

"VOU SENDO" - Soares Teixeira







De quase em quase
vou sendo
quase recém nascido
de cada instante que me bebe
e vou ondulando para esquecer          
que debaixo do palácio das cores
há um rio subterrâneo
que nasce do silêncio das dores
às vezes sou deserto
onde poisam todos os ventos
às vezes floresta
onde crescem árvores de mim mesmo
às vezes mar
como estas palavras tão cheias de peixes
e é isso
vou ondulando como se voasse
na transparência de um jogo
onde sou jogado sobre uma mesa
sem matéria
a viajar no espaço
igual aos outros dados
cão cadeira búzio brinquedo
conforta-me saber que
ar escreve-se
com a tinta de um tinteiro
de vazio azul



Soares Teixeira – 20-11-2014
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

"EM VÃO" - Soares Teixeira








Um astro
na palma da mão?

que astro?
aquele ponto a brilhar?
aquela incandescente evidência
da linguagem dos espaços?
será ele um potro de luz
acabado de nascer?
será ele tumulto de fim
num arder de saudade
prestes a morrer?
ainda existe
aquele astro?
ou é apenas memória?
tempos passados
idos
e assim vividos
pelas distâncias
tempos desaparecidos
mas ainda futuros?

que mão
esta extremidade de braço?
este promontório de dedos?
esta contemplação de gesto?
será um barco antigo levado
pela mesma magia de vento
que soprou de panos a acenar?
será um músculo
a libertar alguém da monotonia?
será uma veia
envolta pela carne da liberdade?
ou é apenas uma sonâmbula
alada vontade de longe
sem relâmpago nas asas
nem universo no caminho?
será ainda ascensão de pálpebras?
será ainda apoteose de peito?
ou brasas quase apagadas
de um sol desfeito?

tudo em vão



Soares Teixeira – 18-11-2014
(© todos os direitos reservados)

domingo, 16 de novembro de 2014

"SONHOS" - Soares Teixeira







Sonhos

filhos aéreos
da íntima viagem
do olhar

leveza de murmúrios líquidos
de nascentes a brilhar
entre secreta folhagem

toalhas de linho e lira
sobre a mesa posta
para o banquete da ilusão

Sonhos
o que são?
respiração do pensamento?
uvas da vinha do desejo?

Já não sei

Apenas sei
das ilhas
nas velas dos veleiros
das viagens nascidas
dos dias derradeiros
das flores esquecidas
nas salas das sílabas



Soares Teixeira – 16-11-2014
(© todos os direitos reservados)