segunda-feira, 24 de março de 2014

"AS PORTAS DO OLHAR" - Soares Teixeira








No eterno início
um véu a flutuar num céu
meu teu
nosso

Vem o momento
em que descobrimos
que o mundo está completo
depois de abrirmos as portas do olhar
e caminharmos até ao lugar leve
dos lábios da claridade adormecida
onde com o sorriso dos libertos
ficamos fáceis a nós próprios
tornando-nos parte desse início
desse véu
meu teu
nosso
que flutua
na secreta origem da palavra
frágil morada de ausências habitadas
pelos mistérios de instantes por acontecer
um véu sem princípio sem fim
sem matéria
límpido
um véu a flutuar no ar
o véu vivo dum pensamento
que atravessa o tempo
um eterno primeiro momento
de descoberta
ainda em vagar de fogo frágil

Depois a sagrada chama
a incandescente alegria
a poesia



Soares Teixeira – 23-03-2014
(© todos os direitos reservados)

sábado, 22 de março de 2014

"CELEBRAÇÃO" - Soares Teixeira









Sagradas e sábias as árvores quase não falam mas ao longo dos seus troncos há palavras ditas em surdina, no limiar de um silêncio anelante e vertical e audíveis apenas pelo horizonte dos que partilham a nudez das cores e a órbita de astros iniciais. Puro segredo, secreto prodígio, plena satisfação sentir-vos… árvores! árvores! árvores! árvores percorridas por tanto murmúrio em flor, sempre recém-nascidas do milagre, intacto assombro na veia do instante, arte de inaugural enigma… árvores! meu êxtase, meu excesso sem fim, minha placidez, minha espiral de imensidade. Árvores! meu amparo, contínua lucidez, que bom ter-vos a meu lado - quando julgo que sou inteiro e inquebrável, quando tenho de reunir os meus pedaços, quando tenho de chamar pela última ânfora dos meus instantes, quando tenho de largar a pele para voltar a ser início -, que bom partir do meu gesto e depois abraçar-vos e assim chegar à minha alma. Deusas das ofertas matinais e das celebrações noturnas, deusas de formas puras, deusas de vontade sem máscara, deusas que dançam no meu contentamento, deusas sorridentes e de cabeça erguida e de olhos postos nas viagens dos pássaros, das nuvens e dos sonhos, deusas do incrível, da aliança; sim, beijo-vos, beijo-vos como se me banhasse no último mar dos tempos.
Agora vamos dar as mãos, eu, e tu, e tu, e tu também - nós, os que pertencemos à raça dos golfinhos siderais. Vamos rodear a árvore e nela celebrar todas as árvores. Magnífica sede de revelação; olhar as árvores e esperar as suas palavras, como penumbra que aguarda a luz. Sim ao círculo que somos. Fantástica ascensão; respirar o insondável amadurecimento da sílaba, sentir a carícia da palavra a percorrer a superfície do sentir, para depois observarmos, deslumbrados, a prometida unidade, ébria de além. Sim ao círculo em que nos tornamos. Árvores, por vós emergir, por vós descobrirmo-nos; plenitude na página, sem peso, do ser; intensa unanimidade do mistério; solene transparência a vibrar no instante. Sim ao círculo com que giramos. Árvores! amor com vontade de viver em nós, os pássaros, os que atravessam a espessura dos dias e se tornam azul entregue ao sonho. Sim ao círculo com que nos elevamos. Amor das árvores por todos os que por elas renascem, por todos os que nelas se libertam - amor retribuído oh árvores Sim ao absoluto das vossas palavras.



Soares Teixeira – 21-03-2014
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 20 de março de 2014

"LEVEZA" - Soares Teixeira










Descalço pela primavera
ando de baloiço
num quase poema
como uma criança a brincar
com os ângulos das distâncias
as palavras ficam para trás
Fecho os olhos
as minhas mãos seguram as cordas do baloiço
sou o vaivém da minha leveza
Sinto-me acaso oculto
e que uma ideia em flor
me observa
estendo-lhe os dedos transparentes
coloco-a na lapela do pensamento
e vou para um lugar
onde os meus celeiros ficam mais fartos
e os meus veleiros com as velas mais enfunadas
lá não preciso explicar
que sorriso pode significar tapete voador
que gesto pode significar abóbada
que amor pode ser árvore
ou que eternidade pode ser instante
os sonhos entendem


Soares Teixeira – 20-03-2014
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 18 de março de 2014

"BRINCADEIRA" - Soares Teixeira









Agora eu sou a Terra
e tu brincas
à volta da minha cintura
e bates palmas e dizes
“Um dois três
cheia de prata cheia de luz
cá estou eu outra vez”
depois sou eu
estendo os braços
dou três passos
e digo
“Um dois três
cheio de mar cheio de ar
cheio de mim também
cá estou eu
neste lugar e mais além”
e assim pela noite fora
um dois três ora tu
um dois três ora eu
Enlouqueci?
talvez
renasci?
tão bom
tornei-me criança?
saudades
É em criança
que melhor se brinca
melhor se flutua
não achas Lua?



Soares Teixeira – 19-03-2014
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 17 de março de 2014

"PALAVRA ANFÍBIA" - Soares Teixeira









Da cantilena das ondas nasce a palavra anfíbia e nela viaja aquele que olha para lugares distantes, para tempos remotos, e vê… vê! vê: grupos de raparigas dançarem uma dança de roda em torno de antiquíssimas oliveiras; cães que olham, como pessoas, para um velho sábio sentado num mercado e que fala pausadamente enquanto descansa de uma viagem que muitos pensam ter começado com os deuses e que acham não acabará nunca; homens com três quartas partes de vida passadas a cavalgar entre estepes e céu; outros homens com o mesmo tempo de vida entre céu e mar; outros ainda com esse mesmo tempo de existência entre sangue e vinho; outros toda a vida entre outros que julgam conhecer mas não conhecem; mulheres grávidas desses homens - dessas pedras a rolar pelos caminhos - e grávidas de mulheres que, como elas, serão mel e torres e vozes ao vento, rogando que ele se abra e receba os seus sonhos e as suas danças de roda. Nua cantilena com mais refrões de perguntas que refrões de respostas, cantilena sem rosto e com tantos rostos. Aqui se erguerá o palácio, diz um rei; aqui dormirei, diz um pastor. Aqui se erguerá o templo, diz um sacerdote ao tocar no solo com o seu bastão de ouro; sim, aqui é bom, diz ao pássaro o curandeiro, erguendo ao alto o seu colar de búzios. E todas estas palavras ou são escutadas pelo mar ou pelo vento que as vai dizer ao mar e o mar guarda-as dentro de si e os seus ombros e as suas bocas – que são as ondas – levam-nas aos ouvidos das praias. E a cantilena das ondas ascende à respiração daquele que olha o horizonte e na palavra anfíbia vai ao encontro, vai ver acontecer, vai acontecer… naquilo que foi, é, e será.




Soares Teixeira – 16-03-2014
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 10 de março de 2014

"SIGO O CAMINHO DAS CIGARRAS" - Soares Teixeira













Sigo o caminho das cigarras
nada detém os pássaros
que voam dentro das minhas veias
nem os rios que correm
das minhas pálpebras
Não sou um sonho
mas também não sou real
vou poisando nos segundos
como um pardal
íntimo das abóbadas do riso
dos ombros da luz
e da noite que escuta o desconhecido
Quando não estou num galho de tempo
desenho céus marinhos
em paisagens que ganho à claridade
Sigo o caminho das cigarras
levo no peito
a volúpia da liberdade




Soares Teixeira – 09-03-2014
(© todos os direitos reservados)



"CAMÉLIAS" - Soares Teixeira








Camélias
elegância viva
a voar no poema
canção vegetal
em repouso no belo
cântaros de paz
de onde brotam
as sílabas do amor
arte
de bem vestir os dias



Soares Teixeira – 05-03-2014
(© todos os direitos reservados)