quinta-feira, 11 de julho de 2013

"LENTO O SOM PROPAGA-SE" - Soares Teixeira

Lento o som propaga-se, quase resto de eco, quase silêncio. Ouve-se ainda, mas muito pouco. Dói. Na planície derradeira, árvores translúcidas ladeiam uma flor de caule quebrado. Aguardam que o tempo vivido seja tempo convertido em novo lírio. Tudo está recolhido dentro de si mesmo, numa ordem própria do destino. O som, talvez de sino, quase desligado da realidade é, contudo, um sulco de arado no sentir. Prepara-se a hora nova, preparam-se as novas águas, prepara-se o reencontro. Uma flauta e um pano de linho estão suspensos, junto da flor no limiar do eterno. Aguardam o momento em que hão-de receber a nudez do espírito. Lento, o som quase não existe, apenas a sua distância nos é frontal. Lento, o som quase se converte num rumor de ondas de um mar desconhecido, a bater no casco de uma barca que aguarda pela viagem. Toda a inteireza do enigma observa o tudo rente ao nada, o nada rente ao tudo. No caule quebrado da flor está um embrião de unidade. Tudo tão frágil. Ainda habitas a matéria, Luís – e amanhã?



Soares Teixeira – 11-07-2013
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terça-feira, 9 de julho de 2013

"O INSECTO VOOU" - Soares Teixeira

O insecto voou. Com ele voou também o olhar que se detivera na pequena criatura. E o instante, suspenso, recomeçou; o insecto voltou a ser uma princesa encantada e o olhar que o olhava viajou para uns lábios com sede de poema. O tempo sorri, enquanto caminha, passeando a sua nudez. Sim, porque o tempo está nu (nunca teve tempo para se vestir). E sorri, porque gosta de estórias em que princesas encantadas olham com os seus grandes olhos de libélula para olhos abertos a outros mundos. Entretanto há uns lábios que se tornam asas, viajam pelas veias e saem pelos dedos; lábios transformados em palavras encantadas que se espalham como pequenas libélulas.



Soares Teixeira – 09-07-2013

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segunda-feira, 8 de julho de 2013

"HÁ NAS COISAS VULGARES UMA RARA COR QUE AS ATRAVESSA" - Soares Teixeira

Há nas coisas vulgares uma rara cor que as atravessa. Às vezes a excessiva proximidade não nos permite ver a coluna, apenas a sua sombra. E quantas vezes a essa coluna que não vemos segue-se outra, e a esta outra ainda, e todas elas formam um templo feito à nossa medida, mas do qual não vemos mais do que a sombra de uma coluna - uma única sombra, que nos pode parecer estrangeira. Às vezes vale a pena não guardar o gesto e estender a mão para a sombra que nos observa. Às vezes quando o passado parece ser uma nostálgica sombra derramada pelos passos eis que – rara – surge a cor de uma coisa vulgar que invoca esta coisa vulgar que somos. Às vezes há pessoas invulgares; têm o hábito de não ser estrangeiras perante as flores.



Soares Teixeira – 08-07-2013

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"HÁ SEMPRE UM LÁPIS" - Soares Teixeira

Há sempre um lápis na ponta do grito que desenha uma nova madrugada. Há sempre um lápis de cabeça erguida e braços abertos ao horizonte. Há sempre um lápis numa enseada de futuro. Há sempre um lápis dentro de uma paisagem, ou de uma palavra; à espera dos dedos que habitam o olhar dos inquietos. Há sempre um lápis pronto para ser a viagem dos iniciados na arquitectura das esferas. Houve um lápis em Tebas, houve um lápis em Atenas. E o lápis de Lisboa? Aquele que saiu do Tejo e traçou o jamais imaginado? Há sempre um lápis de veias, sangue e vontade, há sempre um lápis a reinventar o mundo, há sempre um lápis no alimento do Ser. “Sou um vestíbulo do impossível um lápis de armazenado espanto…”, diz Natália Correia. É bom atravessar os dias como um lápis, neles escrever: ar, mar, amar - e por aí navegar. Ir, partir, de noite ou de dia. Ir… porque o sonho não se gasta e se se gastar, temos a poesia para o afiar.



Soares Teixeira – 08-07-2013

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sábado, 6 de julho de 2013

"INCÓMODO" - Soares Teixeira

Incómodo. Há um excesso de pequenez a respirar os meus instantes. Observo-a. Anda por aí a sobrar do espaço e a invadir a festa alheia; a minha festa, para a qual apenas convidei aves migratórias. Que quer essa asa incompleta, encurralada na ambição de sobrevoar as lonjuras? Na minha festa bebe-se azul por cálices de transparência e comem-se pequenos pedaços de sol molhados em horizonte; na minha festa escuta-se música tocada pelo vento em instrumentos feitos de praias, árvores e montes, e ao som dessa música eu e os meus convidados dançamos, apenas vestidos de leveza. Consinto que alguns centauros a tocar flautas e acompanhados por duendes a fazer soar címbalos e pandeiretas invadam a minha festa, permito também que algumas gotas de orvalho rolem entre os meus convidados. O que eu não tolero é a intromissão de uma pequenez que nem sequer merece ser nomeada. Enxoto-a. Vai-te!



Soares Teixeira – 06-07-2013
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"O VENTO NÃO DÓI NOS GRANDES VELEIROS" - Soares Teixeira

O vento não dói nos grandes veleiros; empurra-os para a descoberta de si mesmos e do seu lugar no horizonte. Nos dias carregados de azul o vento não dói nos grandes veleiros, nos dias carregados de cinzento o vento não dói nos grandes veleiros. Os grandes veleiros só sentem dor quando não há vento porque a calmaria é que dói; com a calmaria os grandes veleiros tropeçam na sua imobilidade, deixam de se procurar, e são estranhos perante o horizonte. Os desafios, as contrariedades e os infortúnios, tornam fortes os mastros, as velas, as proas, os cascos e as quilhas dos grandes veleiros. Praias distantes; ilhas remotas; promontórios de assombro; Fogos de Santelmo; auroras boreais; sereias; mitos; monstros, não se vêm, não se alcançam, não se vivem, com calmarias. Os grandes veleiros sabem que a dor não dói porque o que importa é a viagem. Essa é a grande lição que os grandes veleiros dão aos outros.



Soares Teixeira – 05-07-2013
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quinta-feira, 4 de julho de 2013

"A PELE É UMA PLANÍCIE ONDE O AR CRESCE" - Soares Teixeira


A pele é uma planície onde o ar cresce, quente. Ao longe a fonte de onde apetece beber. Ao meu lado um pássaro, à sombra, tem as asas que me apetecia ter. Mansidão total de horas lentas. As únicas criaturas inquietas são duas vogais que se afastam e atraem; vão para dentro de si mesmas até quase desaparecerem no vazio, depois expandem-se até se tornarem num universo. Porquê? Será essa a sua condição? Será que brincam? Qual será a verdadeira natureza dessas vogais? Sinto-as íntimas dos meus dentes, do meu sangue, do meu olhar, do meu suor, do meu desejo. O Sol aquece. As vogais vão junto do pássaro que está à minha esquerda, roubam-lhe as asas e voam – juntas, rumo à fonte. Lá vou eu.  


Soares Teixeira – 04-07-2013
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