domingo, 29 de dezembro de 2013

"OFERTA" - Soares Teixeira








Ofereço-te
a luz que se liberta das madrugadas
as distâncias que se estendem dos poemas
os sons mais íntimos de uma galáxia

Viro-me para a minha infância
e procuro a mais bela recordação
ofereço-ta

Vou buscar a liberdade de uma gaivota
e uso-a para embrulhar
o silêncio com que nos beijamos

Ofereço-te
esta romã no sangue, esta flauta lunar
esta proa de bruma, este sol sem peso
esta espuma que de mim voa



Soares Teixeira – 29-12-2013
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

"ALENTO" - Soares Teixeira








Onde
senão na intimidade do céu
encontramos a cor do sonho?
Onde
senão na espera dos horizontes
encontramos o nosso caminho?
Onde
Senão no absoluto das flores
encontramos a voz do alento?

Sentir…
até ao tecto de nós mesmos
e não achar tecto
mas outro céu
outro horizonte, outra flor
Sentir..
para lá da sabedoria do silêncio
e achar desejo
em ser vento
anterior às rochas
Sentir…
início a atravessar distância
sede sem nome
respiração intacta
de raiz inaugural

Leve
a palavra habita a casa
Leve
a palavra ondula no rio
Leve
a palavra prolonga

Ser caminho que se questiona
Ser certa incerteza
Ser além em qualquer olhar

Ter por casa um rio
e nele navegar
pensar



Soares Teixeira – 26-12-2013
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

"SOLSTÍCIO DE INVERNO" - Soares Teixeira








É tempo de Solstício de Inverno. Alegrai-vos abóbadas escondidas sob as lajes do chão. Irrompei de vós mesmos como súbitos relâmpagos em vós descobertos, decifrados e por decifrar. Aos de olhar inflamado na proa do gesto, digo-vos: Vivam! Gozem! - como sempre fizeram. Aos variáveis na cor da tela da vida, digo-vos: arco-íris e girassol - sempre. Aos que amam a dor de se despedirem das colheres que sentem não deverem alimentar-lhes o sorriso, digo-vos: Há tempo de ser o derradeiro sonho dos que se sonham, há tempo de ser a lágrima da ignota estátua em que se converterá o existir – este é o tempo de assobiar vontades marítimas. Enquanto as árvores tocarem flautas dentro dos ramos, enquanto os pássaros trouxerem nas asas a respiração da liberdade, enquanto os peixes nomearem tudo o que no seu reino é deslumbramento, enquanto os ventos espalharem sementes pelo peito dos horizontes, enquanto as nuvens forem a pátria do coaxar das rãs, enquanto os lagos acariciarem o reflexo do Sol, enquanto os cumes das montanhas forem beijo soprado à Lua; equídeos correrão dentro das minhas veias, nas suas crinas estará a incandescência das galáxias e nos seus cascos toda a avidez da luz. Oh! instantes que chovem dos instantes, saltarei no vosso charco, esfregar-me-ei com a vossa lama, beberei o leite - pelas minhas mãos ordenhado - das vossas vacas sagradas. Afastem-se de mim os amantes titubeantes, afaste-se de mim o cabecear dos que se alimentam da negação dos sonhos, afastem-se de mim os que entrelaçam as mãos nas correntes do medo, afastem de mim a seriedade dos sensores, afastem de mim a voz engomada dos moralistas. Pego nas conveniências, olho-as, rio-me com estridentes gargalhadas de gozo, e atiro-as para longe, para que os ratos as comam. Tragam-me vinho, tragam-me de comer, tragam-me festa – tragam-me os vossos gestos fora das ânforas que sois nos dias vulgares. Cantai comigo, dancemos. Brindemos à Terra, amada fêmea de férteis seios e opulentas ancas. Vestidos do avesso não escondamos que o nosso corpo é uma história por contar. Troquemos presentes. Sê felizes. O Sol vencerá!





Soares Teixeira – 22-12-2013
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

"TANGO!!" - Soares Teixeira








Vem!!
Vamos dançar!!
Tango!!
Tu, Lua, fêmea de seios siderais
e longas pernas
- a coroação dos lascivos
que por ti ardem até ao verso
da luz nupcial
Eu, miradouro, de pélvis em prece
e longos braços
- a sagração do verbo
que em mim começa e acaba
e o verbo é ser
De lábios a desejar a rosa
vestido a rigor para o nosso incêndio
ajoelho aos teus pés
estendo-te a mão
e puxo o grito mudo que me ofereces
Submeto-te às minhas leis
e o mundo deixa de te ver
Também eu me afasto
da órbita dos instantes
Ah!! Prazer carnal
de sermos absolutos entre os astros
soberanos do ilimite
rebeldia que se oferece aos abismos
que unem e afastam os mistérios
Zeus e Hera!! Espantem-se!!
escandalizem-se, deuses!!
Moralistas do pequeno grão
chamado Terra
gritai e insultai a inacabada loucura
atirai pedras a quem acontece entre os astros
Dobro-te o corpo
instigo-te os músculos
dispo-te a vontade
és minha, Lua!!
Estendes-me até aos confins dos teus gestos
raptas-me de todos os espaços
expões a minha nudez de animal desencarcerado
sou teu, Lua!!
Passam cometas de longas barbatanas
- sorriem-nos cúmplices
Estrelas lançam-nos olhares incandescentes
- as suas pupilas invejam-nos
Mundos em gestação conversam sobre nós
- falam com admiração
Tango!!
Eu e tu!!
Lua!!
sem metafísica, sem drama
sem folha seca ao vento, sem saudade
sem estigma, sem máscara, sem sofrimento
sem intriga atada ao pensamento
sem dias a cicatrizar, sem sonho ao relento
Absurdos perante tudo e coisa nenhuma
fantásticos perante nós
eu e tu, Lua!!
cheio de tango!!
dançamos!!
este tango!!
como dois determinados sinais de pontuação
para além da razão
para além de qualquer explicação
e que nada nem ninguém nos tire isto que somos
dois pontos de exclamação!!
juntos!!
a dançar um tango!!
ao som da imaginação!!



Soares Teixeira – 17-12-2013
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

"FUSÃO" - Soares Teixeira




                                                                                                                Fotografia de Mendes Domingos


Nós, criaturas de silêncio sonhado e grito solar, que desejamos ser desejados e tememos não ser temidos, somos por fora feitos à imagem e semelhança uns dos outros e por dentro portadores da inclemência das galáxias. Carreiro de formigas que se engrossa, somos uma equação cada vez mais complexa, um celeiro de dúvidas cada vez maior, um labirinto de olhares cada vez mais estreito, um ferro cada vez mais quente. E isto assombra e também dói. Assombro de surpresas nuas, dor que em silêncio se entranha no corpo, nos ossos e no nome. Agora faço uma pausa e vou para um lugar mais íntimo, onde permaneço e aí penso que às vezes é bom demorarmo-nos na polpa das palavras pensadas e senti-las como abundância de ar que nos falta, de horizonte que nos espera, de além onde possamos regressar aos pássaros que fortemente julgámos ter sido – e portanto fomos. Longa pausa, quase quebra. Às vezes é bom sermos apenas palmas de mãos, estendidas em conchas para as coisas mínimas. Apetece-me dizer que ao poeta lhe cumpre sentar-se num grão de pó e chamar-lhe astro, e sentar-se num astro e chamar-lhe grão de pó. Apetece-me ainda dizer que ao poeta lhe cumpre ser manto do seu vazio e guardar uma ponta desse agasalho para aconchegar um pássaro a tremer de frio – talvez (quem sabe) se não será esse o tal pássaro que, doce e terrivelmente, julgámos ter sido – e ainda somos. Fui regressando desse lugar mais íntimo e estou no ponto inicial (e isto obviamente é algo que apenas eu posso compreender – o rio é meu, apenas eu lhe conheço as águas, as margens e as grutas). Existir: terrível equação de crianças, terrível geometria de crianças. Rectas, intersecções, curvas, tangentes, logaritmos, algoritmos, exponenciais, diferenciais. Musical matemática a saber a poema. Talvez fingir seja a solução dessa equação. Fingir, não como quem falsifica, dissimula, usa de hipocrisia ou pretende ignorar, mas fingir como quem renasce – um fingir solar. Afasto-me novamente. Pausa. Descobrir o palco e o palco/poema, soletrar fin  gir, fin  gir, até que tudo se resuma ao essencial e à contínua descoberta do essencial – da verdade. Outra máscara porque esta já está envelhecida, de ideias enrugadas. Outra máscara porque esta já não assombra. Outra máscara… a monotonia dói nas velas dos veleiros em mar sem vento… outra máscara. Ser e não ser, o mesmo, outro e além. E de novo regresso.Tantas formigas; engrossam, engrossam o carreiro. Máscaras, máscaras – trouxe-as do meu deambular, atiro-as ao ar. Que caiam, lentamente, e que as apanhe quem quiser. Pergunto a um anónimo que apanhou uma delas: Fingem os poetas porque vêm tanto mau fingir e finge o mundo ser poeta? Oiço responder que sim. Digo-te companheiro: fingimos todos nós, criaturas de silêncio sonhado e grito solar, fingimos ignorar o nada que nos espera. Pobres crianças descalças e de vela na mão. Está escuro?! Melhor fingir que não!



Soares Teixeira – 12-12-2013
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

"BASTA UMA FLOR" - Soares Teixeira








O poema aguarda dentro do instante
que gravita em torno do ser
e às vezes basta uma flor
para que os lábios do ser
pousem nos lábios do poema
e o despertem
e isso aconteça por amor

Uma flor apenas pode bastar
uma flor a voar na retina
e beijada com o olhar certo
Uma flor sem nome
a crescer por trás de uma pedra
Uma flor frágil quase indecisa
exilada dos dias
Uma flor com vontade de resistir
Apenas isso
sem veemência de paisagem
sem olhar de pássaro
sem amplexo de vento
apenas isso
apenas uma flor
não achas meu amor?

Apenas essa flor pode bastar
para que relâmpagos se ergam do mar
e peixes dourados nadem em lagos lunares
e salinas cantem os mistérios dos átomos
e florestas irrompam de uma rocha
e tigres corram em gestos por acontecer
leve e breve essa flor pode bastar

Não achas meu amor
que apenas uma flor basta
para alguém ser maior?



Soares Teixeira – 08-11-2013
(© todos os direitos reservados)



quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

"RECOMEÇAREMOS" - Soares Teixeira








Recomeçaremos
das granadas de lágrimas
que nos explodem no peito

Disso podem estar certos!

Recomeçaremos
das espigas
que se ocupam em queimar
com o ácido do medo
Recomeçaremos
das águas que envenenam
com o vómito da mentira
Recomeçaremos
do horizonte que apagam
com o hálito da chantagem

Disso podem estar certos!

Recomeçaremos
do terramoto
da vossa tirania
Recomeçaremos
do pântano
do vosso cinismo
Recomeçaremos
da lepra
da vossa arrogância

Disso podem estar certos!

Recomeçaremos
dos muros que derrubam
e são a nossa vida
Recomeçaremos
das vinhas que arrancam
e são a nossa esperança
Recomeçaremos
dos sinos que quebram
e são a nossa liberdade

Sim!
Recomeçaremos!
Disso podem estar certos!



Soares Teixeira – 05-12-2013
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

"CARTA INACABADA A RIMSKY-KORSAKOV" - Soares Teixeira








Estou-me a ferir com música e sorrio de prazer. É bom sentir a pequena gota de emoção escorrer para o mundo. Invejo-a, invejo a minha pequena lágrima. É bom o belo. Oiço-a…sempre inicial… sempre íntima. Oiço-a… a música onde revivo o que vivi – pássaro, peixe, chaga, chama, chamamento. A música que tanto ouvia no mar que me vazou e encheu. Há lugares em que cada segundo é um poema dito muito devagar. Nalguns desses lugares pergunto-me a que distância estou da próxima estrada, da próxima esquina, da próxima casa, do meu corpo. Duas horas? dois minutos? Dois segundos? Há lugares assim; sendo não-lugares existem tão fortemente que se tornam mais reais que a vulgaridade do lugar ocupado pela âncora do ser – o corpo. Estou num desses lugares – e quero estar! Não sei quanto tempo me separa do ofício de voltar a ser eu; carnal, esculpido pelos meus passos. Dezembro, noite. Aqui, no convés do meu navio, sou um eu sem identidade e o meu pensamento é nudez de azul na distância – só isso. Oiço-a… a música onde balanço, a música onde me vejo e de onde me vejo, a música que me projecta e de onde me projecto. Ah… liberdade de ir com as formigas do tempo e de me infiltrar entre as ervas do mistério. Ah… prazer de sentir os perfumados óleos de enigma, que amorosamente recolho na taça em que me tornei. Abre-te! Rasga-te! Ordeno-te – abre-te fruto ausente! Obedece ao grito agudo e longo! Dentro de mim há luz por todos os lados, mais intensa ainda que a deste Sol a dizer que o dia está a começar. Cada onda está a meio caminho entre o princípio e o fim e todas escrevem uma carta inacabada. Ondulam algas, voam pássaros, céu sem nuvens. O navio vai, e eu vou com ele. Música… alegria… núpcias com o belo… dor de ti, belo. Água; mãe dos cânticos, filha do azul. Água; baptismo dos instantes, que me fazes sentir aparição, que me fazes sentir que nunca fui quem julgava ser. Água, que me perguntas tanta coisa, as tuas perguntas vão até aos meus locais mais sombrios, àqueles onde há demasiado musgo, mesmo àqueles que já são fragmento; tento-te responder, tento, mas como tu sou a escrita de uma carta inacabada. Ondas… navio…agora este violino, depois a orquestra, de novo o violino, olha a harpa, olha as flautas, os violoncelos, os clarinetes, trompas e trompetes, a percussão e todos, todos estes instrumentos - tantos, tantos peixes, todos a brilhar, neste mar, nestas ondas; serenas , solenes e trágicas. A que distância estou de mim? e da próxima ilha? Que dor de belo, que infinito a viver o meu instante, que eternidade a sonhar este meu oceano musical. Água feita de música - intimidade, unidade, ebriedade, majestosa delícia do amplo que me amplia. Rimsky-Korsakov, só tu me entendes não é verdade? Ah, meu irmão, como amo a tua Scheherazade. Para ti esta carta inacabada. Um abraço afectuoso do teu José.





Soares Teixeira – 03-12-2013
(© todos os direitos reservados)