quarta-feira, 27 de novembro de 2013

"AO LER UM POEMA" - Soares Teixeira








Ao ler um poema
de que é feita a minha matéria
enquanto caminho
entre as palavras
que me recebem?
não sei
enquanto habito o poema
não habito o corpo
e se por acaso habitar o corpo
é para comer viagens
como se fossem uvas
Ao ler um poema
sou resposta
a uma voz que me chama
e ergo-me
como árvore
que abandona a planície
e vou
vou abraçar as palavras
sabendo que assim agradeço
a quem as escreveu
o poeta
esse cavaleiro
com armadura de ausência
escudo de silêncio
e espada de grito

no alto da montanha
onde os meus ramos
renascem da asa do poeta
o meu espírito
solenemente recebe
o arado da distância
e é nesse sulco
que um cometa deposita
a incandescente semente
da música dos meus astros




Soares Teixeira – 25-11-2013
(© todos os direitos reservados)

sábado, 23 de novembro de 2013

"ACREDITO" - Soares Teixeira







Acredito no cântico das sereias lunares
acredito na barca de luz que nos visita
acredito na gravidez da Terra
acredito na folhagem do nosso corpo

Acredito no que as aves me dizem
acredito nos olhares meigos das flores
acredito que as ondas têm tornozelos
acredito que os espaços inventam nomes

Acredito em tudo isso
porque sou matéria de mistério
porque sou pulsação de enigma

Acredito em tudo isso
porque sou ferida aberta na razão
porque essa é a minha condição

Por isso as minhas pálpebras
não se cansam de conversar
com os astros que me fazem voar




Soares Teixeira – 22-11-2013
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

"POEMA A QUATRO MÃOS" - Soares Teixeira




                                                         Fotografia de Mendes Domingos




Entre mim e o horizonte
há um poema a quatro mãos
e é azul o gesto que chama pelo gesto
e é azul o olhar que atravessa o instante
e há golfinhos e albatrozes
que acreditam que o mundo é sagrado
e há nuvens e ventos
que dançam a dança da secreta solenidade
e há promontórios no peito
que são veleiros a quatro mãos

Templos de claridade
colunas de espigas
pátios de princípio
paredes de eterno
abóbadas de flautas astrais
convoca-vos o meu peito de astrolábio
escutem-me
sou múltiplo na minha ânfora
e átomo perdido na vossa arquitectura
mas procuro   procuro   procuro

Procuro a viagem sempre futura
de um tempo que me respira
e sou o que estou e o que vou
num existir a quatro mãos
que se procuram   procuram   procuram
mesmo quando me encosto a um muro
mesmo quando me leva uma folha de outono
Por bagagem apenas transporto aquilo que sei
sei que estou aqui e no horizonte
sei que sou um rio a quatro mãos




Soares Teixeira – 21-11-2013
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

"SAIBAM HIENAS" - Soares Teixeira







Saibam hienas que não me importo de viver na selva. Se é isso que querem, muito bem. Mas devo-vos avisar que não sou dócil. Se a minha sombra vos parecer um vago rosto de silêncio saibam que a sua cabeça em chamas se ergue sobre os martelos que a rodeiam. Meter as mãos nas algibeiras da palavra e gastar-me dentro dos meus segredos, como aquário a flutuar no vento? isso não é pão que me alimente. Saibam hienas que não sou mais um dos vossos dias, o que sou é mais uma curva do meu rio. Arco quebrado a respirar folhas mortas? As vossas mentiras não destroem a minha arquitetura; há catedrais no meu pescoço, pontes onde o meu gesto principia, estádios onde o meu sangue galopa. Existam nos olhos dos répteis que vos seguem como esquinas de trapos, existam no rastejar dos insetos que vivem para vos sorrir cegamente – em mim são crânios a rolar no deserto; é assim que vos vejo. Desculpem se tropeço na minha lucidez e caio para o lado oposto das vossas patas, é intencional, gosto de cair nas madrugadas e nas gotas de orvalho. É verdade que às vezes sou amável perante as facas que tentam disfarçar. Que hei-de fazer? É esta a minha forma de vos dar coices. Aos unicórnios exige-se uma certa elegância.





Soares Teixeira – 14-11-2013
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 12 de novembro de 2013

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

"EM NOITES DE LUA CHEIA" - Soares Teixeira







Em noites de Lua cheia
transformo o instante numa caixa
onde guardo o tempo
sento-me sobre esse fácil ilimite
molho bolachas de certeza
em leite de dúvida
e como-as muito devagar

assim…
alimentando o embrião
de um ser por acontecer
recomeço-me cá dentro
e no meu corpo cresce um universo
e no meu sangue abrem-se pupilas
e nas minhas veias vibram pétalas e asas

leve…
entrego-me àquele que estou a gerar
filho e pai
da palavra e da unidade
do princípio e do fim
depois renasço-me
alfa e ómega de mim



Soares Teixeira – 08-11-2013 – 12h:56m
(© todos os direitos reservados)

sábado, 2 de novembro de 2013

"DENTRO DE CADA UM DE NÓS" - Soares Teixeira








Dentro de cada um de nós há uma Lua que nos observa com olhar de antiquíssima fêmea fascinada com os nossos instantes. Ouvem-na respirar dentro do vosso peito? ela está lá, escondida e atenta - às vezes brilha, cresce, agiganta-se. Que nome lhe havemos de dar? razão... ideia… palavra... não sei. Talvez mergulhando dentro destes nossos lábios possamos ir ao seu encontro - olhá-la olhos nos olhos     sentir-lhe o cheiro      escutar o som dos seus passos      tocar-lhe no corpo      beber do seu leite. Depois podemos construir um barco de papel nele colocar a candeia transparente que não sabíamos ter na mão e ir pelo nosso primordial mar interior - ir, ir, ir – viver as mais improváveis navegações, sem nos querermos embriagar na descoberta de nós mesmos mas pressentindo que isso pode acontecer; olha! a infinita flor que nasce no corpo da sílaba, olha! a respiração das distâncias intactas dentro de novos pássaros, olha! a página a renascer do reino das veias, e ali olha! aquela resina de palavra antiga, ah! e além? vês? aquele vibrar de pálpebras… parecem revelar ancestrais pupilas nos andaimes do tempo, parecem as triunfais rosas leves que levam a beleza aos sonhos, aqueles sonhos de gente como nós, gente que se calhar éramos e seremos nós, gente de aquém e além agora. Agora… que é isso? Que significado tem? Neste percurso que iniciámos ao mergulhar dentro dos lábios, o que representa o agora? Agora fazemos nossa a carne dos espaços onde há e não há matéria, agora fazemos nosso o sangue que o tempo derrama no silêncio, agora fazemos nosso o prazer de consentir que as manhãs dos amanhãs acontecidos e por acontecer nos espreitem, agora confundimo-nos com a orla de todas as imanências e de todos os improváveis, agora somos a unidade e por isso somos também aquela Lua que nos observa com o seu olhar de antiquíssima fêmea fascinada com os nossos instantes. Sejam vocês mesmos - diz-nos ela – sejam vocês mesmos continuamente entornados como trigo a cair da ânfora que seguro nos braços. E então um novo pássaro descobre um atalho e todo o nosso corpo - mesmo o não adivinhado - e toda a nossa alma – mesmo a não adivinhada – sai dos nossos lábios num novo retorno, um retorno em palavra, palavra aberta; aberta como a flor do Hibisco.





Soares Teixeira – 02-11-2013
(© todos os direitos reservados)