Negro, és hóspede do pensamento.
Talvez quilha de navio a sulcar a superfície da consciência. Lá em baixo
anémonas e corais ondulam no olhar. Alguns peixes também. No reino das estátuas
submersas há harpas mudas no cimo de precipícios e ânforas a espalhar azeite
destinado a oferendas. Ondulam reflexos de espelhos atravessados por segredos
desterrados. Algas enrolam-se à aliança que atravessa o oceano que existe entre
as têmporas, que existe entre o horizonte e o mito, que existe entre o nome e a
máscara. Solenidade do vazio que regressa à ausência, touro que procura a raça
que habitou as primeiras grutas, antiquíssimo porto de manhãs libertas do
tempo. Enfeitados de negro os braços penetram no interior do corpo onde tudo é
ferozmente íntimo, onde os ossos são mastros de veleiros sem nome, onde o
sangue é o eterno meio-dia de um céu sem gaivotas, onde a carne é uma
superfície líquida com enseadas no gesto, e onde os músculos são salas de
palavras ditas e de palavras não ditas. Diz-me o teu nome para te nomear,
negro. Diz-me, negro, o que prometes e de que geografia é feita a tua túnica, a
túnica que vestes na tua boda, na boda que celebras com os que aceitam o teu
abraço. Se não me disseres como te chamas, se não me disseres uma palavra que
seja, então a hora é minha. Subirei os meus degraus de interrogação até que
eles se tornem certeza, subirei depois – de uma forma que só eu sei - ao
vértice de mim mesmo. Uma última vez chamarei por ti. Uma última vez. Então, se
a esse chamamento derradeiro não me responderes, dar-te-ei um nome, dar-te-ei
um rosto, e prestar-te-ei culto. Essa é a minha vingança, o meu caminho para os
astros.
Soares Teixeira – 14-10-2013
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