sábado, 9 de maio de 2009

Eça de Queirós, "A Relíquia"



Hoje lembrei-me da titi. Sim, da tia Patrocínio. Escura, descarnada, beata do primeiro ao último neurónio, lá estava ela junto do seu riquíssimo oratório, quase desfalecendo de emoção. O sobrinho Teodorico, antevendo-se já herdeiro da insuportável e temível velha, solenemente anunciara que lhe havia trazido de Jerusalém… a coroa de espinhos. Exactamente! Essa mesmo! A santa coroa de espinhos que os algozes de Nosso Senhor Jesus Cristo lhe colocaram sobre a cabeça para sua maior humilhação e padecimento. A santa coroa dentro dum pequeno caixote de madeira feito com… os pregos da Arca de Noé. Quase consegui ver os dedos secos da criatura, tentaculares, a tremer de comoção, desfazerem o laço do embrulho que estava dentro da caixa e depois erguerem – para horror geral, e nosso deleite – a camisa de dormir da Mary. Quase consegui ver o semblante petrificado de Teodorico, incrédulo, sem nada que o pudesse amparar naquele mergulho pelos abismos. Que vontade de lhe estender a mão, de o felicitar pelos momentos de prazer com a bela Mary, e sair com ele dali para fora, para o mundo, deixando a titi a esvair-se em ais de incenso e cólera. Ah Eça dá cá um abraço!
Soares Teixeira