terça-feira, 28 de junho de 2016

"O IRREPRESENTÁVEL" - Soares Teixeira



Fernando Pessoa observa-se
nos outros que são ele? pergunto
e vice-versa,  responde uma lagarta
que desliza pelo canteiros dos instantes
reclino-me na cadeira do meu pensamento
olho para as mãos das pessoas e vejo névoa
uma névoa que encobre todos os possíveis
carícias e bofetadas, música e facas
o alfa e o ómega
o ser e o não ser
o tudo e o nada
num aperto de mãos tudo pode acontecer
um mundo que começa
um mundo que acaba
uma árvore que cresce
a lagarta acompanha-me através dos instantes
não tenho grande simpatia por lagartas, confesso
mas por esta sim, é útil ao meu ecossistema
alimenta-se vorazmente do meu excesso de pensamento
e isso é bom
come, come, lagarta
vai comendo as folhas verdes das minhas ideias
para que novas folhas nasçam na árvore que sou
e para que os caminhos permaneçam limpos
esta lagarta é um bicho-da-seda
como aqueles que tinha em criança numa caixa de camisas
e que alimentava com folhas de Amoreira
sim porque eu sou uma Amoreira
sempre fui
ainda não o tinha dito, pois não?
Levanto-me da cadeira e caminho ao encontro de Fernando Pessoa
observo-o observando-se e observando-me
e sinto-me pertença de um olhar alheio, o dele
e pertencer é ser…
a lagarta contorce-se e ri-se
Tudo é um teatro
e nós, para sermos nós, temos de ser o outro que nos compreenda
ou pelo menos tente
e tudo é estreia e tudo é ensaio geral e tudo é pano a cair
se todas as pessoas da sala, pensassem assim
quanta multiplicidade, quantas intercepções, quanta loucura
quantas mãos de cinza e sangue
trabalha lagarta trabalha vai comendo o meu excesso de ideias
        pausa     pausa     pausa    
É bom fazer pausas e recolher silêncio no corpo
ser apenas lábios a beber o ar
        leveza, transparência, serenidade
                    o irrepresentável
e depois partir
ir
com uma borboleta por companhia
E Fernando Pessoa?
olha, lá vai ele, em tanta gente que foi, que é, que somos
Às vezes gostava ser uma lagosta – são elegantes
mas acontece que sou Amoreira
e ainda bem
senão como poderia dar de comer ao bicho-da-seda dos meus instantes
Por agora adeus
vou fazer companhia aos astrolábios




Soares Teixeira –27-06-2016
(© todos os direitos reservados)

domingo, 26 de junho de 2016

FOTOGRAFIA DE SOARES TEIXEIRA E MARIA TERESA HORTA

Eu e Maria Teresa Horta na Feira do Livro de Lisboa. 11de Junho de 2016.

Autógrafo de Maria Teresa Horta, no Livro "Anunciações"


Capa do Livro "Anunciações", de Maria Teresa Horta


quinta-feira, 23 de junho de 2016

"ANTI-VÍRUS" - Soares Teixeira



No ano 2222
como serão os computadores?
não sei
sei que as flores serão iguais
e o mar também e o Sol e o firmamento
e os gatos quando atravessam o luar
assim como muitas coisas
próprias do bicho-homem
serão iguais:
o coçar o nariz, o bocejar,
o sentar, o levantar, o deitar
o satisfazer as necessidades fisiológicas básicas
e por aí…
igualzinho
e quanto ao amor
ao sonho, à fantasia
ao ódio, à inveja,
à traição?
iguais? Talvez não…
Quando as ciências da computação
usarem na perfeição a biologia molecular
e o sistema nervoso central
do bicho-homem
e muito do que ainda se está por inventar
como será esse
bicho-homem-computador?
Páro para pensar
naquilo de que hoje tanto se fala
e que dá pelo nome de
“Invasão da privacidade”;
escutas telefónicas, ataques informáticos,
etc…
e pergunto-me que privacidade,
que intimidade, que liberdade
que sinceridade, que humanidade
terá essa criatura neuro-bio-telemática?
esse programável algoritmo-psico-social?

(pode ser que me engane
talvez não venha a ser assim muito mau
- diz o meu lado optimista)

(Mas… e se o for?
porque o que tudo o que o bicho-homem faz
tem um lado mau
- contrapõe o meu lado pessimista)

Bom
de nada adianta especular
resta-me confiar no poder
das flores, e do mar
e do Sol e do firmamento
e dos gatos quando atravessam o luar
confiar nesse tremendo poder
poder cósmico
capaz de criar a maior das forças
a força da poesia

que tem sido ao logo dos tempos
um excelente anti-vírus
para as asas do dia a dia



Soares Teixeira –23-06-2016
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 20 de junho de 2016

"SEM DESTINO" - Soares Teixeira



Estranho
quando o frio agasalha a tristeza
já me tem acontecido
muito raro,
é preciso a alma estar como uma corda podre
quase a partir-se
apenas um último fio a aguentar todo o peso da existência
é uma solidão a engolir silêncio
por entre nós na garganta
o olhar sente
a chave perdida, a porta fechada, a sala vazia
os passos parecem maltratar o chão pisado
e tudo dói
mesmo as mãos suadas do tempo a descarregar instantes
     para o cais da vida
principalmente isso
não apetece nem falar à toa nem ser curiosidade em qualquer acaso
nada
apetece entrar num táxi invisível
ou numa rosa murcha
e ir
sem destino, sem explicação
para trás
deixar
abandonada no esquecimento
a mala
com a camisa puída da desilusão
e a lágrima sobre o arame farpado



Soares Teixeira –20-06-2016
(© todos os direitos reservados)

sábado, 18 de junho de 2016

"DESPERTAR" - Soares Teixeira



Ai o prazer de acordar num poema
e estender os pés sem dar pelo fim do lençol da palavra
e estender os braços e as mãos e sentir os astros
e estender o olhar como quem regressa à luz
depois calçar os chinelos do espanto
caminhar no quarto encantado até junto da grande janela
feita de cisnes, nuvens e pulsação de ânforas mágicas
abri-la, com um sorriso, aos ventos de todas as cores
e ficar a sós com a areia da praia
e construir castelos à beira mar
e convidar as sereias para neles morar



Soares Teixeira –18-06-2016
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 16 de junho de 2016

"O SOALHO QUE RANGE - Soares Teixeira



Abro a porta devagar
Lá estás tu
Ricardo Reis
Atrevo-me… e entro
avanço uns passos
devagar porque o soalho range
e não te quero incomodar
Estás sentado a uma secretária
não me vês
mas eu vejo-te
sereno, tranquilo,
disciplinado no gesto lento com que folheias
o jornal que estás a ler

Observo em redor
Dois jogadores de xadrez
deslizam no espaço
entre eles o tabuleiro com as pedras
e um púcaro de vinho
a um canto ardem casas e mulheres são violadas.
Indiferentes,
apenas atentos ao seu velho tabuleiro de xadrez
os jogadores jogam

Cerro os punhos
As minhas horas não são plácidas
Não sei que faço aqui
nem como aqui vim parar
Mas o facto é que aqui estou
e estando sou
sem nada nas mãos
a não ser o elas estarem fechadas

Penso:
(enquanto oiço os sons da cidade destruída
- aquela, ao canto, e a que me arde no peito)

Execrável, aquela besta humana
que já nem memória tem
da sua própria humanidade
Tornou-se demora de ódio
sobre os pinheiros que crescem
nas almas alheias
Lá, no fundo da gruta onde se refresca
com o sangue das suas vítimas,
abraça os mortíferos insectos
que diligentemente vai criando
e quando leva as mãos aos lábios
acaricia
o gume da lâmina com que mente
e mente e mente e mente

Os jogadores de xadrez observam-me
por breves instantes, com ar interrogativo
Enfrento-os

O ângulo do meu queixo questiona-os

Calma?
louvar a serenidade?
ser sossego na vida?
não resistir à atrocidade de homens e deuses?

Regresso ao meu íntimo

Ah! Se as minhas sílabas não tivessem despojos
dos meus dias…
mas têm! E é esse húmus que faz
com que me nasçam as garras
que cravo no fogo e no gelo!

Ganho coragem e avanço
Estendo o braço para tocar no ombro de Ricardo Reis
E ouso falar
- Dizes, Ricardo Reis
“não consentem os deuses mais que a vida”
Digo, eu, alguém e ninguém,
- Não consinto aos deuses menos que a vida!

Tremo
A minha mão está sobre o espaldar da cadeira
Atravessei Ricardo Reis! Atravessei-o!
Recuo atemorizado
Ricardo Reis volta-se e observa-me, circunspecto,
Não tenho forças para mais e grito:
- Eu sou o soalho que range!
E saio dali a correr



Soares Teixeira –13-06-2016
(© todos os direitos reservados)


(Nota: Ricardo Reis é um dos heterónimos de Fernando Pessoa).