sábado, 26 de fevereiro de 2022

"O QUE A POESIA NOS TRÁS" - SOARES TEIXEIRA

 

A poesia traz-nos coisas

que podem ser incompreensíveis

para alguns – até perigosas

e essas coisas podem ser

avenidas calcetadas a luar

ou pássaros psíquicos

a levantar voo de ponteiros  

cansados dos seus relógios

 

Isso, que a poesia nos trás,

e que pode por muitos

ser considerado delito,

é um convite para que o olhar

abra portas de armários

e deslize para outra dimensão

Isso, que a poesia nos trás,

é a liberdade

 

 

 

----------

Soares Teixeira-26-02-2022

(© todos os direitos reservados)

 

 

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

"MEDO" - SOARES TEIXEIRA

 

Gosto do infinito

e, de à minha maneira, o imitar

sabendo que jamais o conseguirei

mas hoje não me sinto disponível

para gostar do infinito;

hoje sinto o infinito engarrafado

e não quero imitá-lo,

porque talvez conseguisse


Eu, que gosto tanto do infinito

e, de à minha maneira, o imitar,

mesmo sabendo que jamais passarei

de passos descalços no intervalo

de dois nadas,

hoje sinto-me uma gaveta cheia

de talheres inúteis

porque dentro da minha boca

volumosas grades ocupam todo o espaço


O ar jovem dos instantes não existe,

os lugares estão cabisbaixos, tristes,

as coisas, sem dedos, não me tocam


Sombra que se cansa a si própria

Tempestade a despertar de um sono

Nem as flores são como é seu costume


Gosto do infinito


Gosto de ficar à escuta das respostas

às minhas perguntas,

e hoje isso não é possível

porque não consigo 

escutar essas  respostas,

hoje os sons são outros,

hoje não me consigo ver longe,

naquele ainda muito longe,

naquele longe que nunca chega,

naquele longe que me chama,

naquele longe onde gosto de viajar,

hoje há um peso onde não me aguento

existir


Tenho medo

E eu preciso tanto do infinito


----------

Soares Teixeira-25-02-2022

(© todos os direitos reservados)


(a pensar na guerra na europa de leste)


sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

"FLAUTA" - SOARES TEIXEIRA

 

Abri a porta e saí

e eu sozinho era um cortejo festivo

Para trás deixei gente

que se forçava a acreditar

que amanhã, de si faria

a mais jovem das promessas,

que amanhã, em si seria

a respiração de uma viagem

Amanhã…, sempre amanhã…

amanhã como morada de uma força por acontecer

amanhã como fechadura limpa de ferrugem

amanhã como lugar de searas

Constante criação de amanhãs adiados

Constante morrer de fome por esses amanhãs

Como conheço essa ânsia de pão…

Saí, pois,

como o mais decoroso e indecoroso amante

- a mim me amava!

Extraordinário?

Porquê?

Não me amar seria insultuoso,

seria trair o gesto com que abri a porta

Quis novos pedadagos,

quis novos companheiros,

e fiz dos meus passos, isso que me faltava

Se receava cair, ou perder-me?

Na verdade

para por a salvo os meus dias

qualquer incidente de percurso seria suportável

Familiarizado, que estava,

apenas com metade de mim, ou menos,

a libertação – disso de tratou - não era arrojo,

era desígnio,

não só justo, como urgente

Não tinha a certeza do que teria para escutar

dos meus próprios pensamentos

nem do que teria para lhes dizer

Haveria de descobrir

Afinal, eu era flauta a descobrir horizonte



----------

Soares Teixeira-14-01-2022

(© todos os direitos reservados






"PÁSSARO QUE SOU" - SOARES TEIXEIRA

 

Em comum com os pássaros

tenho a forma

quando, como eles,

me estendo pelo horizonte

Houve tempo

em que não tinha a percepção

desta semelhança

que agora sinto tão poderosa

Como foi possível

ter havido um tempo

em que eu não concedia a palavra

ao mar e ao céu

para deles escutar esta verdade

que me faz tão feliz:

eu tenho a forma dos pássaros!

Ah!… os caminhos…, os caminhos…,

os caminhos que atravessei

e os que me atravessaram

os caminhos que me entrelaçaram

noutros caminhos

uma, e outra, e outra, e outra vez…,

e isso eram golpes,

no pescoço, nos ombros , nas pernas

e eram tantos os golpes

que eu em vez de andar

dava cambalhotas e rodopiava

Agradeço àquela cigarra

que numa noite de luar

em que eu e os astros nos sentimos

órgãos do mesmo corpo,

me disse:

Dá a palavra ao céu e ao mar”

Sim,

a ‘culpa’ foi da cigarra

foi ela,

que ao unir-se ao momento,

ao fazer parte do tal corpo,

foi ela que me disse

para não voltar a pentear os cabelos

sem primeiro

dar a palavra ao céu e ao mar,

e foi o que fiz,

e quem me penteia agora,

pássaro que sou

dos meus instantes,

é o vento e o meu pensamento,

e nada mais


----------

Soares Teixeira-13-01-2022

(© todos os direitos reservados





quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

"LIBERDADE" - SOARES TEIXEIRA

 

Não me apetece fazer nada

A minha vontade resume-se a isto:

ser leveza vazia

Entro com agrado no silêncio, nele me acolho

e fico longe de mim,

afastado de uma criatura forjada - eu


A maneira mais correcta de estimar o meu espírito

é deixar necessidades por acontecer

e recordações, e cansaços, e perguntas,

e respostas, às quais muitas vezes me tento ajustar;

é retirar de mim a árdua tarefa de decidir

o que realmente conta e o que não conta


Sou o nada integral

Se estou em concordância ou discordância

com o que quer que seja; isso é-me indiferente

Defino-me da forma mais simples possível: o nada

Agrada-me estar neste limite

que não é limite nenhum – é liberdade



----------

Soares Teixeira-12-01-2022

(© todos os direitos reservados


quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

"TATUAGEM" - SOARES TEIXEIRA


O poeta recolhe
gotas de orvalho
nas mãos do pensar

De que pedra nasces, poeta?
Que segredo é o teu?

O silêncio é resposta
que faz ninho no ar

E o vento enfuna as velas
desse orvalho
que se faz ao mar,

Isto foi tatuado
nos meus ombros
Por quem?
Não sei

----------
Soares Teixeira-30-12-2021

(© todos os direitos reservados)


segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

"JOGO" - SOARES TEIXEIRA


Erguer os braços
abrir os dedos e movimentá-los
lentamente
Aproximação
dedos a procurar outros dedos
dedos a encontrar outros dedos
Aprendizagem
dedos lentamente noutros dedos
dedos a tactear outros dedos
As pontas dos cinco dedos de cada mão
a conhecerem outras
pontas de outros cinco dedos de outras mãos
e a conversarem
agora isto, agora aquilo,
agora segredos, agora risos
Dedos empurram outros dedos
tentacularmente
aleatóriamente
mais ou menos força
mais ou menos resistência
Dedos como criaturas distintas
independentes
maior ou menor intuição
maior ou menor entrega
Vinte dedos
cinco de cada mão
dez meus
dez teus
a dizerem baixinho
em surdina
o que só eles sabem
que deve ser dito
como deve ser dito
porque deve ser dito
Confissão, compreensão, carícia
Os nossos vinte dedos
têm olhos, nariz e boca
Os nossos autónomos vinte dedos
têm braços e joelhos
Os nossos vinte dedos
tornam-se
cúmplices donos do tempo
Os nossos autónomos vinte dedos
fazem
descobertas improváveis
Os nossos vinte dedos
brincam, jogam, divertem-se,
e beijam-se
com vinte lábios a vibrar



----------
Soares Teixeira-13-12-2021
(© todos os direitos reservados)