sexta-feira, 6 de maio de 2016

"NO PIQUENIQUE DE CESÁRIO VERDE" - Soares Teixeira



Meu querido Cesário Verde
vou confessar-te uma coisa,
e que isto fique aqui só entre nós dois,
tenho um secreto prazer em entrar furtivamente
no teu delicioso poema “De tarde”
faço-o muitas vezes
vou mansinho, pé ante pé,
caminhando entre o piquenique de burguesas
e escolho um lugar propício
de onde possa ver bem toda a cena
depois observo com atenção
aquelas senhoras, todas muito senhoras, muito arrumadinhas,
com gestos muito correctozinhos a falarem umas com as outras
com muitos risinhos e ahs de espanto
gosto também de observar os cavalheiros,
todos muito certinhos, muito convenientes
(tudo tão diferente de hoje em dia… e tão igual…)
há lá umas três ou quatro criancinhas
mas nunca lhes ligo importância
espera, Cesário, não faças essa cara de espanto,
eu sei que te pode parecer estranho mas deixa-me prosseguir
pois, meu querido e intrigado amigo, digo-te que
ao observar os tiques e truques afectados
de algumas dessas personagens
todo eu sou prazer e riso aberto
chego a esfregar as mãos de contentamento
e a bater com os pés no chão, de tanto gozo
e já tenho feito momices que me envergonhariam
aqui nesta vida a que chamamos real
sim! sim! verdade!
não te rias, Cesário, acontece-me mesmo, juro!
ainda no outro dia, nem imaginas…
torci-me todo à gargalhada ao ver o que aconteceu
àquela senhora de vestido de cetim azul claro,
qual? Ora! aquela com cara de bidé! Sentada sobre uma mantinha
de xadrez onde o terreno faz uma ligeira inclinação
sim, eu sei… sei que não está no poema…
não está mas está, porque eu a vejo,
assim como vejo muitas outras coisas que não estão lá escritas
eu depois explico melhor
mas, continuando, ri a bom rir ao ver a dita senhora
gritar de susto, cair para trás e rebolar, quando um pequeno pássaro
lhe passou quase rente ao nariz
é… foi mesmo cómico
mas… sabes… e perdoa-me isto que te vou confessar
o que eu adoro ver
o que me enche de ternura, uma quase comovente ternura,
são vocês dois
tão alegres, tão puros, tão simples, tão naturais,
tão belos,
a comerem despreocupadamente aqueles soberbas talhadas de melão,
aqueles suculentos damascos, aquelas magníficas fatias de pão-de-ló
molhado em malvasia, que me fazem crescer água na boca
tantas vezes eu o sinto e digo:
meus queridos amigos, como queria poder abraçar-vos, e dizer-vos
o quanto me fazem falta,
o quanto tornam os meus dias melhores
o quanto são o meu amparo quando chego a casa cansado
o quanto são o meu alento quando tudo à minha volta é ruído e pressa
o quanto são a minha alma quando sinto roubarem-me a alma
o quanto são o meu corpo quando sinto o meu corpo gasto
adoro-vos, meus amigos, e agradeço-vos o serem como são
se soubesses, meu querido Cesário, como estou farto de imposturas tolas
se soubesses…
se tu soubesses…
mas…
meu querido Cesário, digo-te que…, e mais uma vez te peço perdão,
não me leves a mal,
digo-te que…
o supremo encanto da merenda
o supremo encanto de entrar nesse teu maravilhoso piquenique
é olhar os teus olhos e olhar para onde tu olhas
esse é pois o supremo encanto da merenda
oh que rolas! aquelas duas belas rolas…
a voar… a voar… no céu do teu rosto, e do meu
a voar… belas… ao som do cântico das papoulas
Adeus meu querido amigo, até ao próximo piquenique
um dia, quem sabe, talvez nos juntemos todos
num grande, muito grande, granzoal azul de grão-de-bico




Soares Teixeira – 06-05-2016
(© todos os direitos reservados)



Nota:
Singela homenagem ao poema "De tarde" e ao seu autor, Cesário Verde



    DE TARDE




Naquele piquenique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

 Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!


Cesário Verde 
(1855/1886)


 
 Cesário Verde em desenho de Columbano Bordalo Pinheiro

quarta-feira, 4 de maio de 2016

"O GRANDE LUXO" - Soares Teixeira



O grande luxo é pensar
nas nêsperas, no musgo, nos azulejos da casa velha,
na água do rio, no chá, nas torradas, nas rãs,
nos Faraós, na vizinha do prédio ao lado,
nos asteróides, no Decreto-lei, na manifestação,
na chave de fenda, na filosofia, na dor de dentes,
e por aí fora…
pensar em tudo e pensar tudo
pensar
como quem viaja na carruagem de luxo
de um comboio com destino à cidade
onde as árvores nos convidam para sermos aves
porque sabem que sabemos voar



Soares Teixeira – 04-05-2016
(© todos os direitos reservados)

"NOCTURNO" - Soares Teixeira



De rosto encostado aos astros
dois pensamentos
na boca do olhar

ser espaço
para sobreviver à morte?
ser frase
para sobreviver aos dias?

duas perguntas
dentro de uma rosa
sobre o teclado de um piano



Soares Teixeira – 04-05-2016
(© todos os direitos reservados)

"ESTRANHA VIAGEM" - Soares Teixeira



Estranha viagem
isto de ser parte do todo
que parte?
a mão que acaricia a nudez da flor
ou a mão que descansa numa galáxia?

dentro da espessura
de todas as realidades, físicas ou não
sou uma linha tão ténue, tão fugidia
que por vezes penso se não serei um simulacro
uma transparência a tentar ganhar corpo entre os astros
e alma entre as árvores

as minhas ideias são telescópios e microscópios
para me tentar encontrar
às vezes, quando os acho grandes de mais para os meus braços
ou pesados de mais para as minhas pálpebras
abro a primeira janela em que penso
e vou voar para lado nenhum

e olhem que é bom voar para lado nenhum
enterrar os pés na areia de uma praia sonhada pelas gaivotas
e caminhar
sobre a voz de um início
sob a voz de um início
dentro da voz de um início
sabendo que tudo está na fronteira do fim
e do recomeço
tudo
mesmo tudo
o que é e o que não é

se eu fosse feito de espuma
rente ao vento
não habitava palavras a falar consigo mesmas
mas a parte que me coube ser neste todo
é este teimoso amanhecer nas ruas da minha imaginação



Soares Teixeira – 04-05-2016
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 2 de maio de 2016

"A MÃO" - Soares Teixeira



Com um olhar feito de antes
e outro feito de depois
sou este agora

um Ser que vai sendo
navio com proa de carne
e água do cântaro da hora

tudo reminiscência
tudo realidade
e cada desejo
um balão solto de uma mão
a subir no espaço
rumo a outra mão
lá no alto
aberta
a brilhar



Soares Teixeira – 02-05-2016
(© todos os direitos reservados)

domingo, 1 de maio de 2016

"UNIÃO" - Soares Teixeira



Em mim
um banco de jardim
do outro lado do espaço

nele alguém sentado
com uma flor no regaço
é minha mãe antes de eu nascer

observo a esperança que fui
e o cravo que hei-de voltar a ser
no regaço de outro amanhecer



Soares Teixeira – 01-05-2016
(© todos os direitos reservados)