domingo, 4 de janeiro de 2015

"ASSIM ERA" - Soares Teixeira





Quase em murmúrio
a areia da praia falava
e a nossa nudez de mar
escutava sem escutar
porque tínhamos o sangue
com a cor de um tempo
quebrado contra os espaços
um tempo que parecia ser
não mais que uma longa vinha
onde aqui e ali
se pressentiam cabazes de vime
assentes num chão de nada
um nada muito antigo
assim era
e em nós
a mão da palavra escrevia    
e a linguagem era a do gesto
e a página era o corpo
e tudo o resto
entrava pela porta aberta
de uma nuvem
casas, camas, cadeiras
ruas, automóveis, sinais de trânsito
computadores, telemóveis
pássaros, insectos, gente,
árvores, rios, montanhas,
praias
mesmo as que falavam
sim, mesmo essas
e o beijo selou a porta fechada
e a nuvem desapareceu
para dentro de um cabaz de vime

importante apenas
era a morada
onde nos abraçávamos
e a morada era o sol

a palavra com mão de carícia?
amor

julho, dizia a areia da praia
assim era




Soares Teixeira – 04-01-2015
(© todos os direitos reservados)

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

"LUZ VIVA" - Soares Teixeira







Não sentes nos lábios
asas para além de qualquer pássaro?

sou eu
que numa bandeja de céu
te estendo a viajem de sermos
respiração de ilha para lá do tempo

vai ao teu promontório
abre a janela da íntima retina
e come comigo
astros embebidos em licor de laranja

verás que é bom
sentirmo-nos luz viva



Soares Teixeira – 26-12-2014
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

"NONA" - Soares Teixeira




 
(Página autografada do manuscrito da sinfonia n.º 9 em ré menor, op 125, "Coral", de Beethoven)
© Staatsbibliothek Berlin - Preußischer Kulturbesitz
(Foto retirada do site: http://www.unesco.de/mow-beethovenautograph.html)



Mestre
escuto a tua Nona Sinfonia
e nela sou sem medida
descoberta da estrada solar

como é isto possível?
de que veias trouxeste o sangue?
a que silêncio foste buscar o prodígio?

alegria
todas as esferas que sou
rolam na tua luz, Beethoven
o assombro expande-se
renasço em todas as salas onde entro
corro dentro de mim
de água acesa lavo os meus instantes
sou estuário de espaço
há girassóis no olhar dos astros
há cisnes no sopro da luz
há árvores na sede dos princípios
corro de braços abertos
respiro janelas escancaradas
e barcos a flutuar na liberdade da viagem
e pássaros nos lábios da sublevação

alegria
todos os ramos e folhas que sou
pertencem ao teu corpo musical
impossível não me comover
impossível não receber o relâmpago
impossível não provar do infinito

quem não me entender que fique na praia
vou com as vozes que me chamam
vou
no segredo da claridade inicial



Soares Teixeira – 17-12-2014
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

"AO TOMÁS" - Soares Teixeira







“Mais alguém quer ler um poema?”
perguntou a liberta voz de um nó
mulher camélia de forja no peito
mãe de palavras de trigo feito pão para todos
“Eu gostava, posso?”
indagou o pequeno Tomás
naquela sala repleta de gente grande
que ali estava
dentro da sua roupa, dos seus sapatos
e dos seus mundos
para escutar a voz
de um nó de árvore, nó de pulso, nó de garganta
nó de Ser aberto à dança dos frutos mágicos
“Sim, claro!”
foi a resposta que floriu
e de repente
toda aquela gente grande ficou com a dimensão de um grão
e abandonou os seus sapatos e subiu no ar
e em leveza deixou-se levar na órbita da voz
de um pequeno grande sol
chamado Tomás
que na proa do seu navio-gente
foi a exacta medida da força necessária
para desatar o nó do silêncio
e assim nos estender o amanhã do navio-nação



Soares Teixeira – 16-12-2014
(© todos os direitos reservados)


(Nota: O Tomás é o menino que no lançamento do livro de Fátima Guimarães, “A voz do nó”, no dia 13-XII-2014, em Guimarães, leu um poema da Autora).

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

"ALVOROÇO" - Soares Teixeira







Neste alvoroço de viver
intensamente
a verdade silvestre

há mãos que são navios
e braços que são ondas
e ombros que são brisa
e bocas que atravessam as sílabas
e coxas feitas de palavras
e pés que são verbos
e o resto um pulso de horizonte
sem medida
que nos puxa para a plenitude do grito

nenhuma lucidez de espaço nos falta
nenhum vértice de silêncio
nenhuma espiral de água

aparece-nos claridade na pele
e erguemo-nos num luar só nosso
as árvores observam
do fundo das suas raízes
como a nudez da aliança
abre caminho
na sempre jovem
antiguidade da luz
e os pássaros dizem aos ventos
“O prodígio está ali”
sim é de nós que falam
e é por nós que chamam
os derradeiros unicórnios brancos
Olha! eles vêm!

é manhã nas asas de uma borboleta
e nela vai
o poema que somos



Soares Teixeira – 15-12-2014
(© todos os direitos reservados)