quarta-feira, 22 de outubro de 2014

"DESEJO" - Soares Teixeira






Uma cúpula
sem tempo de construção
um horizonte
na manhã dum lírio
um braço estendido
na folhagem dum grito
chamo-te
os meus lábios são
ânforas em fundos marinhos
asas possuídas pelos espaços
e a minha voz é
o que resta do corpo
o que sobra da luz
rosa aberta no labirinto
água a respirar caminhos
o que fica depois do sangue
o que permanece para lá do ar

purifico-me nesta praia
que é querer-te
dispo-te de movimento
e em mim somos
a nova ondulação
dos nossos nomes



Soares Teixeira – 22-10-2014
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

"AMO-TE" - Soares Teixeira







Quando a realidade é ter o corpo dentro de uma árvore transparente e ir num azul em tons de desejo ao encontro da taça de sol que seguras com o olhar então mãos e pássaros no centro do peito agitam-se como rosas vermelhas de um vermelho que fugiu da origem das cores para ser a pulsação com que respiro a palavra sempre escrita em maiúsculas     AMO-TE. Ouviste os meus ramos abrirem a porta e pronunciarem o caminho? Cada letra um firmamento um filme uma argila fácil de moldar aos lábios. A que se prolonga na surdina de um caule místico M breve e leve como um salto de pardal O de oráculo de oração de ovo depois o T com que se iniciam as palavras tudo total tremendo finalmente E que duas vezes habita no desejo de estarmos os dois sentados naquele tracinho entre verbo e pronome a andar de baloiço como vinho enamorado pelo horizonte. AMO-TE     bonito belo bom boca beijo de mãos dadas a baloiçar no tal tracinho. AMO-TE      trapezista estrela de cinco pontas que nos estende a luz de sermos arte de não ter fim.



Soares Teixeira – 15-10-2014
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

"APETECE-ME" - Soares Teixeira







Apetece-me ser o desenho de um navio
numa canção a subir colinas
apetece-me ser a maresia
no respirar de uma constelação
     e porquê?
este inventar sem margens
com mãos de vogais emplumadas
este querer outras areias
para caminhar entre conchas de consoantes
se tudo fosse um
aaaaaaaaaa
ou um
rrrrrrrrrr
mas não é
tudo
ééééééééééé
como aquela maçã cheia de memórias
minuciosas memórias
das coisas que o vento lhe segredou
e dos poemas
com que o luar a adormecia
como aquela mão cheia de amanhã
aquela mão antiga que acariciou o sol
num gesto que ainda há-de durar mais mil anos
como aquela dor de ser oásis sem palmeira
     não importa o porquê
há orvalho na música
e pardais entre os dedos
isso sim é importante
é ar
ar que me respira
sorrio como chão que assobia
e apetece-me
não sei que evasão
não sei que salvação
pouco importa
adeus navio adeus maresia adeus
agora sou peixe
vou para onde me chamam os corais

olá estrela
dá-me um beijo



Soares Teixeira – 14-10-2014
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

"OLHA BEM PARA MIM" - Soares Teixeira




© image : leschroniquesderorschach.blogspot.fr/



Acredito que a tua boca
não esteja apenas dentro da máscara
que só diz
o que a máquina lhe permite que diga
essa máquina terrível
esta máquina terrível
que cresce
e que rasga e esmaga e esconde e mente
acredito que a tua boca
ainda está nos pássaros e nas ondas abertas aos espaços
no sopro da música e na sublevação da palavra
ainda acredito
Olha bem para mim
tu dantes não eras assim

Leio-te nos olhos a palavra      sobreviver
as tuas pupilas soletram
incansavelmente, maquinalmente, invariavelmente
so bre vi ver
so bre vi ver
so bre vi ver
e tu cumpres a voz da máquina que esmaga
e com que esmagas
para não seres esmagado
so bre vi ver      baba a escorrer dos cantos dos lábios
so bre vi ver      uivo esverdeado a quebrar vitrais
so bre vi ver      esgar de lama de cemitério
aprendeste a mentir como se falasses verdade
aprendeste o gesto certeiro do cinismo
aprendeste a não ter remorso
ah o que te ensinaram
e o que tiveste de aprender
e o que mostras que tens de ser

Acredito que a tua boca
ainda esteja nos ventos que fomos
quero acreditar
mas se eu estiver tão profundamente enganado
então
em nome das palavras
um dia entre nós ditas com solar sinceridade
quando conversares comigo
se vires que não consegues libertar-te dessa droga
autorizo-te que mintas
mas, por favor
em silêncio



Soares Teixeira – 12-10-2014
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

"OS GATOS" - Soares Teixeira




Daisy


Os gatos acreditam no sexto sentido das estrelas, por isso a sua a respiração é a procura do peito da noite e nas suas caudas há rios onde se refletem relâmpagos e nas suas patas há abóbadas por decifrar e nos seus olhos há sempre luas cheias. Os gatos sabem onde encontrar grilos vestidos de cometa e anjos acocorados sobre colunas de topázio e barcos fenícios carregados de lendas e peixes de vento em praias a sonhar amantes. Gato que se preze tem o seu pé-de-meia: pelo menos sete saltos impossíveis em sete vidas para acontecer, sete histórias de piratas escritas no dorso – para quem as souber ler -, sete reinos transparentes com sete tronos à sua espera e ainda sete princesas nuas a dançar a dança das sete quimeras. Os gatos fazem perguntas às perguntas e respondem às respostas e bebem sede de silêncio e são silêncio de sede bebida e miam como se abrissem portas em sono côncavo. Os gatos, porque são gatos, entrelaçam os seus passos com dias a ser memória das esquinas e bocejam em geografias de outras existências e quando se sentam sobre as patas de trás são ausências expostas na sua ostensiva presença. Completos, incompletos; partida, chegada; segredo, revelação, concretos, abstratos; calma, alvoroço – gatos. Os gatos são inexplicáveis explicações da cor que vibra, da flor que canta, da mesa que flutua, da ave transformada em harpa, dos lábios feitos de uvas. Sei tudo isto porque um gato mo contou. Esse que tens no olhar.



Soares Teixeira – 09-10-2014
(© todos os direitos reservados)