sábado, 2 de agosto de 2014

"FRIO" - Soares Teixeira







Frio
nas cadeiras vazias das escolas
destruição
e ela, bêbeda
cospe nas paredes ensanguentadas
dança como uma hiena em chamas
e o seu riso assobia
nos olhares estilhaçados das crianças ausentes
é ela
a guerra
ratazana que o dinheiro engorda
Frio
o amanhã não aquece os meninos
vejam-nos a chorar a última hora!
as meninas sentem-se mascotes do negro
ouvem-nas bater os dentes – geladas?
os professores vão nas mandíbulas dos lagartos
oiçam o som do seu silêncio!
Frio
uma comprida unha, suja de ácido e vómito
rasga os caules das flores
e os instantes assistem impotentes
à dor do futuro degolado
Frio
até os gritos gelam nas gargantas



Soares Teixeira – 02-08-2014
(© todos os direitos reservados)

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

"VOZES" - Soares Teixeira








As vozes das casas
falam ao ouvido do mar
casas antigas
onde durante gerações
uma raça de gente foi lida pelo barcos
que na praia
como animais sem sono
olhavam para os olhares e para os gestos
dos seus donos
e tentavam ler-lhes lá ao longe
no horizonte da retina
quais os seus pensamentos
e depois ouviam-nos, transformados em palavras
de formas caprichosas
“vamos, que o mar promete”
“mar dum raio, é melhor ficar em terra”
“é dia de cuidar das redes e dos barcos”
“safámo-nos de boa!
“mas porque é que eles não chegam?”
(ah! gargantas sem sexo nem idade!)
todas elas palavras de timbre calejado
sílabas salgadas e com cabeça de espuma
consoantes e vogais talhadas ao jeito das ondas
e do horizonte e da única certeza: a incerteza
ao lado dos seus donos os barcos viam mulheres
estranhas criaturas com olhos que pareciam mares
e corpos de animais feitos para parir ilhas
umas como elas outras como eles – os donos dos barcos
mas quando estavam na praia
os barcos também olhavam para o mar
e sabiam os nomes dos outros barcos, dos peixes,
dos lugares e das gentes que ele fez suas
e sabiam isso porque tinham o dom de ler nas ondas
As casas estão vazias
já não há guelras nos beijos, nem escamas nos abraços
nem redes nos gestos, nem barcos nos olhares
já não há nada
nem telhados onde se adivinhavam constelações
nem portas que as crianças cruzavam como peixes luminosos
nem janelas a cheirar a algas
há buracos abertos nas paredes como órbitas vazias
de caveiras alheias aos dias carregados de olhares
e as constelações são o único tecto do abandono
O vento sopra e para ele não há noite ou dia
sopra e como um peixe cego e surdo
adianta-se na praia sem barcos e entra nas casas
e então
então acontece aquilo que as constelações jamais poderiam imaginar
o vento deixa de ser um peixe cego e surdo
e passa a ser um peixe que vê tudo o que flutua no tempo
e ouve tudo o que se desprende das casas abandonadas
“são as vozes das casas a falar ao ouvido do mar”
diz o vento
àquele barco lá ao longe
que lentamente passa e ao passar se recorda
de casas assim, como aquelas
mas num outro lugar



Soares Teixeira – 01-08-2014
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 30 de julho de 2014

"BREVE" - Soares Teixeira







Caminho no jardim
todas as árvores são a primeira árvore
todas as flores são a primeira flor
todos os pássaros são o primeiro pássaro
e todos os meus sentidos são a primeira cal
Já aqui estive
tenho a certeza
num tempo em que os dias não eram vulgares
porque estavam carregados de início
e de palavras ainda dentro dos lábios de coisas por acontecer
e de gestos a acariciar rochas grávidas de água
e de gotas de orvalho que nunca morriam em silêncio
e de libélulas a desenhar círculos perfeitos
Não sei se sou intruso deste instante ou de outro já passado
não sei se os meus cabelos pertencem a este segredo
ou se pertencem aos segredos de um tempo ido
ou se flutuam – longos, mais longos do que alguma vez poderia imaginar
à superfície de um tempo sem tempo e de um espaço sem espaço
Que passos existem nos meus passos?
que navios carregam o meu olhar? De onde vêm? Para onde vão?
que algibeiras procuram as minhas mãos?
que livros caminham sobre as minhas pálpebras?
que fome anda à roda de tudo o que ressoa?
Não sou um reflexo de luz que se insinua
nem um lírio que quase dança na brisa
nem um céu carregado de música prestes a começar
sou um dia mais no sulco das suas horas
próximo apenas da distância que me separa do sonho
e o sonho vai-me deixando ser o que resta dos meus passos
o que resta
quase sem aroma, nem peixes no peito
o que é possível restar
isto é o que me diz uma breve nuvem
breve
como eu



Soares Teixeira – 29-07-2014
(© todos os direitos reservados)

domingo, 20 de julho de 2014

"A OBRA" - Soares Teixeira









A cintilar
as mãos do sol
segredam
aos ouvidos do mar
palavras perfumadas
com óleos de astros
palavras incandescidas
nas fornalhas das distâncias
palavras amadurecidas
em pomares de amanhã
palavras húmidas
com o orvalho dos enigmas
palavras a vibrar
num vazio onde sopram sonhos
vejo a obra
opulenta abundância
em magnífico horizonte
sou o ninguém que se ausenta de mim
para ir
sem respiração nem medida
penetrar na música
que unifica
todos os mistérios
“Sim, vem!”
dizem-me os poros dos instantes
“Sim, vou!”
responde o meu cântico
aceso
sobre as suaves colinas
do mar



Soares Teixeira – 20-07-2014
(© todos os direitos reservados)

sexta-feira, 18 de julho de 2014

"AQUELE DIA" - Soares Teixeira









Aquele dia foi a casa que habitámos
o vento deu-nos nomes de árvores
o sol concordou e os peixes também
só as ondas acharam que deveríamos
ter nomes de navios
concordámos
com o sol com o vento e com as ondas
e fomos
dois veleiros vivos
de mãos dadas – dedos de espuma
como aquela que nos atravessava os pés
(fresca liberdade das sílabas marítimas)
Já o céu estava vermelho e a lua se mostrava
em sorriso e carne
ainda nós caminhávamos naquela casa de praia
que habitávamos
toda ela horizonte de ar e alma
toda ela mundo inicial
e nós nomes de árvores
sem corpo
porque o deixámos na boca de pássaros
que tinham sede de amor




Soares Teixeira – 17-07-2014
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 15 de julho de 2014

"PLENITUDE" - Soares Teixeira








Aqui
cheia de lua
a noite
por isso tão cheia de mim

aqui
de veias e sílabas abertas
ao veemente poema
que brilha na unidade
aqui
sopro liberto dos meus olhos
ânfora liberta da minha pele
pássaro liberto da minha respiração
aqui
acesa colina de absoluto
pulsante proa de navio
apoteose de esferas inaugurais
aqui
aqui     vagar a nascer
aqui     entre uma biblioteca de astros
aqui     diante de um livro sem matéria

aqui
cheio de lua
este que flutua
dentro de mim



Soares Teixeira – 12-07-2014
(© todos os direitos reservados)

sábado, 5 de julho de 2014

"LER" - Soares Teixeira









Ler
até penetrar
na medula do desassossego
depois abraçar o livro
como ilha a abraçar um pássaro
levantar a cabeça
e escutar
que entre o murmúrio da água
há um malmequer que reza
na nascente oculta

inspirar… devagar…
respirar fundo
o além em nós
e ir
ir
na linha da palavra
ir
com o imenso prazer
de saber
que chegar
é uma viagem
um horizonte a acontecer
uma distância por cumprir
ler     até pensar
ler     até ser



Soares Teixeira – 05-07-2014
(© todos os direitos reservados)