As vozes das casas
falam ao ouvido do mar
casas antigas
onde durante gerações
uma raça de gente foi lida pelo
barcos
que na praia
como animais sem sono
olhavam para os olhares e para os
gestos
dos seus donos
e tentavam ler-lhes lá ao longe
no horizonte da retina
quais os seus pensamentos
e depois ouviam-nos, transformados
em palavras
de formas caprichosas
“vamos, que o mar promete”
“mar dum raio, é melhor ficar em
terra”
“é dia de cuidar das redes e dos barcos”
“safámo-nos de boa!
“mas porque é que eles não
chegam?”
(ah! gargantas sem sexo nem idade!)
todas elas palavras de timbre
calejado
sílabas salgadas e com cabeça de
espuma
consoantes e vogais talhadas ao
jeito das ondas
e do horizonte e da única
certeza: a incerteza
ao lado dos seus donos os barcos
viam mulheres
estranhas criaturas com olhos que
pareciam mares
e corpos de animais feitos para
parir ilhas
umas como elas outras como eles –
os donos dos barcos
mas quando estavam na praia
os barcos também olhavam para o
mar
e sabiam os nomes dos outros
barcos, dos peixes,
dos lugares e das gentes que ele fez
suas
e sabiam isso porque tinham o dom
de ler nas ondas
As casas estão vazias
já não há guelras nos beijos, nem
escamas nos abraços
nem redes nos gestos, nem barcos
nos olhares
já não há nada
nem telhados onde se adivinhavam
constelações
nem portas que as crianças cruzavam
como peixes luminosos
nem janelas a cheirar a algas
há buracos abertos nas paredes
como órbitas vazias
de caveiras alheias aos dias
carregados de olhares
e as constelações são o único
tecto do abandono
O vento sopra e para ele não há
noite ou dia
sopra e como um peixe cego e
surdo
adianta-se na praia sem barcos e entra nas
casas
e então
então acontece aquilo que as
constelações jamais poderiam imaginar
o vento deixa de ser um peixe
cego e surdo
e passa a ser um peixe que vê tudo
o que flutua no tempo
e ouve tudo o que se desprende das
casas abandonadas
“são as vozes das casas a falar
ao ouvido do mar”
diz o vento
àquele barco lá ao longe
que lentamente passa e ao passar
se recorda
de casas assim, como aquelas
mas num outro lugar
Soares Teixeira – 01-08-2014
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