sábado, 13 de julho de 2013

"COMEÇO DE OLIVEIRA" - Soares Teixeira





(Foto de Stephenjmed)


As longas fitas coloridas
de onde nos desenrolamos
no decurso dos dias
e que nos permitem
respirar as extensões
do olhar e do pensamento
estendem-se e estendem-nos
até ao fim do promontório
que nos foi oferecido

a partir dai
essas longas fitas
cumprida a sua missão
envolvem-nos a face
depois todo o corpo
e recuam
levando-nos até ao íntimo
da distância sempre questionada

no chão do grande poema
numa secreta sílaba do tempo
receberemos a água inicial
e baptizados pelo mistério
de novo nos converteremos
em começo de Oliveira




Soares Teixeira – 13-07-2013

(© todos os direitos reservados)

"ENQUANTO O ESPAÇO NÃO NOS RECUPERA" - Soares Teixeira

Enquanto o espaço não nos recupera, recuperemos - a cada amanhecer - o perfume do trigo que somos. Chegará o dia em que sacudiremos os nossos ramos e não os veremos, Olharemos depois o nosso corpo, espantados, e perguntaremos pelas crinas, pelas asas, pelas ondas, pela chuva, pelo vento, pelo vulcão; por tudo aquilo que era a nossa matéria. E agora? Perguntaremos ao nos vermos despojados da metamorfose do quotidiano e do sentir. E agora? Que sou eu sem corpo? Sem aquele corpo que me fazia ser múltiplo, não apenas em pensamento. E agora? Os ossos; a carne; a pele; o gesto e o gosto da vontade concretizada, onde estão? Enquanto o espaço não nos reclama, reclama-nos a intimidade de tudo o nos observa, como se fossemos uma porta por onde é suposto entrar. Cumpre-nos saber abrir essa porta e saber fechá-la – consoante as circunstâncias. É certo que a maçaneta nem sempre é fácil, por vezes mete medo, queima e deixa ferida, morde e deixa a carne exposta. Mas é esta intimidade que nos dá ímpeto bastante para termos ramos, crinas, asas, ondas, chuva, vento e vulcão, em cada célula do sol que habitamos e da lua onde sonhamos.



Soares Teixeira – 12-07-2013
(© todos os direitos reservados)


"O AMANHÃ ESTÁ DISPERSO NA ETERNIDADE" - Soares Teixeira

O amanhã está disperso na eternidade. A barca já navega, rumo ao seu destino – ao teu destino, Luís. Agora o único som é o do diapasão do mistério. Escuto Mozart, enquanto tento reunir algum entendimento disperso. Aqui as coisas continuam como as deixaste; entre palavras, cordeiros e hienas o mundo continuará a girar. Debruço-me sobre mim mesmo para observar alguns promontórios, alguns arquipélagos, algumas aves marinhas. As ausências podem ser uma espécie de presença forte. Acredito que sim. É bom irmos acreditando nalguma coisa que nos ajude a não estar tão ausentes de nós próprios. A música ajuda. Escuto Mozart. A música é aquela pátria onde todos nos reencontramos. Não é necessário estarmos fisicamente perto uns dos outros para, através da música, apertarmos a mão, sorrirmos, partilharmos o olhar e aceitarmos a intromissão dos pássaros. Não me passa pela cabeça fazer outra coisa senão escrever estas linhas e escutar música. Evidentemente que compreendes. É um concerto de piano, a minha companhia - obviamente piano. Escolhi Mozart por uma razão psicológica e sensorial; preciso de claridade. Há uma certa linha comprida e clara que às vezes se torna necessária, como um fio que nos ajude a chegar a qualquer lado, a sair de um qualquer labirinto ou simplesmente que nos una a algo que está longe mas com uma proximidade latente. Evidentemente que entendes. Dá-me um abraço. Um beijinho à Hermínia, um abraço ao Ricardo. Até um dia.



(singela homenagem a Luís Manuel Sande Freire, que se ausentou deste mundo a 12 de Julho de 2013, aos 80 anos - um grande Amigo)

Soares Teixeira – 12-07-2013
(© todos os direitos reservados)


quinta-feira, 11 de julho de 2013

"LENTO O SOM PROPAGA-SE" - Soares Teixeira

Lento o som propaga-se, quase resto de eco, quase silêncio. Ouve-se ainda, mas muito pouco. Dói. Na planície derradeira, árvores translúcidas ladeiam uma flor de caule quebrado. Aguardam que o tempo vivido seja tempo convertido em novo lírio. Tudo está recolhido dentro de si mesmo, numa ordem própria do destino. O som, talvez de sino, quase desligado da realidade é, contudo, um sulco de arado no sentir. Prepara-se a hora nova, preparam-se as novas águas, prepara-se o reencontro. Uma flauta e um pano de linho estão suspensos, junto da flor no limiar do eterno. Aguardam o momento em que hão-de receber a nudez do espírito. Lento, o som quase não existe, apenas a sua distância nos é frontal. Lento, o som quase se converte num rumor de ondas de um mar desconhecido, a bater no casco de uma barca que aguarda pela viagem. Toda a inteireza do enigma observa o tudo rente ao nada, o nada rente ao tudo. No caule quebrado da flor está um embrião de unidade. Tudo tão frágil. Ainda habitas a matéria, Luís – e amanhã?



Soares Teixeira – 11-07-2013
(© todos os direitos reservados)


terça-feira, 9 de julho de 2013

"O INSECTO VOOU" - Soares Teixeira

O insecto voou. Com ele voou também o olhar que se detivera na pequena criatura. E o instante, suspenso, recomeçou; o insecto voltou a ser uma princesa encantada e o olhar que o olhava viajou para uns lábios com sede de poema. O tempo sorri, enquanto caminha, passeando a sua nudez. Sim, porque o tempo está nu (nunca teve tempo para se vestir). E sorri, porque gosta de estórias em que princesas encantadas olham com os seus grandes olhos de libélula para olhos abertos a outros mundos. Entretanto há uns lábios que se tornam asas, viajam pelas veias e saem pelos dedos; lábios transformados em palavras encantadas que se espalham como pequenas libélulas.



Soares Teixeira – 09-07-2013

(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 8 de julho de 2013

"HÁ NAS COISAS VULGARES UMA RARA COR QUE AS ATRAVESSA" - Soares Teixeira

Há nas coisas vulgares uma rara cor que as atravessa. Às vezes a excessiva proximidade não nos permite ver a coluna, apenas a sua sombra. E quantas vezes a essa coluna que não vemos segue-se outra, e a esta outra ainda, e todas elas formam um templo feito à nossa medida, mas do qual não vemos mais do que a sombra de uma coluna - uma única sombra, que nos pode parecer estrangeira. Às vezes vale a pena não guardar o gesto e estender a mão para a sombra que nos observa. Às vezes quando o passado parece ser uma nostálgica sombra derramada pelos passos eis que – rara – surge a cor de uma coisa vulgar que invoca esta coisa vulgar que somos. Às vezes há pessoas invulgares; têm o hábito de não ser estrangeiras perante as flores.



Soares Teixeira – 08-07-2013

(© todos os direitos reservados)

"HÁ SEMPRE UM LÁPIS" - Soares Teixeira

Há sempre um lápis na ponta do grito que desenha uma nova madrugada. Há sempre um lápis de cabeça erguida e braços abertos ao horizonte. Há sempre um lápis numa enseada de futuro. Há sempre um lápis dentro de uma paisagem, ou de uma palavra; à espera dos dedos que habitam o olhar dos inquietos. Há sempre um lápis pronto para ser a viagem dos iniciados na arquitectura das esferas. Houve um lápis em Tebas, houve um lápis em Atenas. E o lápis de Lisboa? Aquele que saiu do Tejo e traçou o jamais imaginado? Há sempre um lápis de veias, sangue e vontade, há sempre um lápis a reinventar o mundo, há sempre um lápis no alimento do Ser. “Sou um vestíbulo do impossível um lápis de armazenado espanto…”, diz Natália Correia. É bom atravessar os dias como um lápis, neles escrever: ar, mar, amar - e por aí navegar. Ir, partir, de noite ou de dia. Ir… porque o sonho não se gasta e se se gastar, temos a poesia para o afiar.



Soares Teixeira – 08-07-2013

(© todos os direitos reservados)