terça-feira, 9 de julho de 2013

"O INSECTO VOOU" - Soares Teixeira

O insecto voou. Com ele voou também o olhar que se detivera na pequena criatura. E o instante, suspenso, recomeçou; o insecto voltou a ser uma princesa encantada e o olhar que o olhava viajou para uns lábios com sede de poema. O tempo sorri, enquanto caminha, passeando a sua nudez. Sim, porque o tempo está nu (nunca teve tempo para se vestir). E sorri, porque gosta de estórias em que princesas encantadas olham com os seus grandes olhos de libélula para olhos abertos a outros mundos. Entretanto há uns lábios que se tornam asas, viajam pelas veias e saem pelos dedos; lábios transformados em palavras encantadas que se espalham como pequenas libélulas.



Soares Teixeira – 09-07-2013

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segunda-feira, 8 de julho de 2013

"HÁ NAS COISAS VULGARES UMA RARA COR QUE AS ATRAVESSA" - Soares Teixeira

Há nas coisas vulgares uma rara cor que as atravessa. Às vezes a excessiva proximidade não nos permite ver a coluna, apenas a sua sombra. E quantas vezes a essa coluna que não vemos segue-se outra, e a esta outra ainda, e todas elas formam um templo feito à nossa medida, mas do qual não vemos mais do que a sombra de uma coluna - uma única sombra, que nos pode parecer estrangeira. Às vezes vale a pena não guardar o gesto e estender a mão para a sombra que nos observa. Às vezes quando o passado parece ser uma nostálgica sombra derramada pelos passos eis que – rara – surge a cor de uma coisa vulgar que invoca esta coisa vulgar que somos. Às vezes há pessoas invulgares; têm o hábito de não ser estrangeiras perante as flores.



Soares Teixeira – 08-07-2013

(© todos os direitos reservados)

"HÁ SEMPRE UM LÁPIS" - Soares Teixeira

Há sempre um lápis na ponta do grito que desenha uma nova madrugada. Há sempre um lápis de cabeça erguida e braços abertos ao horizonte. Há sempre um lápis numa enseada de futuro. Há sempre um lápis dentro de uma paisagem, ou de uma palavra; à espera dos dedos que habitam o olhar dos inquietos. Há sempre um lápis pronto para ser a viagem dos iniciados na arquitectura das esferas. Houve um lápis em Tebas, houve um lápis em Atenas. E o lápis de Lisboa? Aquele que saiu do Tejo e traçou o jamais imaginado? Há sempre um lápis de veias, sangue e vontade, há sempre um lápis a reinventar o mundo, há sempre um lápis no alimento do Ser. “Sou um vestíbulo do impossível um lápis de armazenado espanto…”, diz Natália Correia. É bom atravessar os dias como um lápis, neles escrever: ar, mar, amar - e por aí navegar. Ir, partir, de noite ou de dia. Ir… porque o sonho não se gasta e se se gastar, temos a poesia para o afiar.



Soares Teixeira – 08-07-2013

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sábado, 6 de julho de 2013

"INCÓMODO" - Soares Teixeira

Incómodo. Há um excesso de pequenez a respirar os meus instantes. Observo-a. Anda por aí a sobrar do espaço e a invadir a festa alheia; a minha festa, para a qual apenas convidei aves migratórias. Que quer essa asa incompleta, encurralada na ambição de sobrevoar as lonjuras? Na minha festa bebe-se azul por cálices de transparência e comem-se pequenos pedaços de sol molhados em horizonte; na minha festa escuta-se música tocada pelo vento em instrumentos feitos de praias, árvores e montes, e ao som dessa música eu e os meus convidados dançamos, apenas vestidos de leveza. Consinto que alguns centauros a tocar flautas e acompanhados por duendes a fazer soar címbalos e pandeiretas invadam a minha festa, permito também que algumas gotas de orvalho rolem entre os meus convidados. O que eu não tolero é a intromissão de uma pequenez que nem sequer merece ser nomeada. Enxoto-a. Vai-te!



Soares Teixeira – 06-07-2013
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"O VENTO NÃO DÓI NOS GRANDES VELEIROS" - Soares Teixeira

O vento não dói nos grandes veleiros; empurra-os para a descoberta de si mesmos e do seu lugar no horizonte. Nos dias carregados de azul o vento não dói nos grandes veleiros, nos dias carregados de cinzento o vento não dói nos grandes veleiros. Os grandes veleiros só sentem dor quando não há vento porque a calmaria é que dói; com a calmaria os grandes veleiros tropeçam na sua imobilidade, deixam de se procurar, e são estranhos perante o horizonte. Os desafios, as contrariedades e os infortúnios, tornam fortes os mastros, as velas, as proas, os cascos e as quilhas dos grandes veleiros. Praias distantes; ilhas remotas; promontórios de assombro; Fogos de Santelmo; auroras boreais; sereias; mitos; monstros, não se vêm, não se alcançam, não se vivem, com calmarias. Os grandes veleiros sabem que a dor não dói porque o que importa é a viagem. Essa é a grande lição que os grandes veleiros dão aos outros.



Soares Teixeira – 05-07-2013
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quinta-feira, 4 de julho de 2013

"A PELE É UMA PLANÍCIE ONDE O AR CRESCE" - Soares Teixeira


A pele é uma planície onde o ar cresce, quente. Ao longe a fonte de onde apetece beber. Ao meu lado um pássaro, à sombra, tem as asas que me apetecia ter. Mansidão total de horas lentas. As únicas criaturas inquietas são duas vogais que se afastam e atraem; vão para dentro de si mesmas até quase desaparecerem no vazio, depois expandem-se até se tornarem num universo. Porquê? Será essa a sua condição? Será que brincam? Qual será a verdadeira natureza dessas vogais? Sinto-as íntimas dos meus dentes, do meu sangue, do meu olhar, do meu suor, do meu desejo. O Sol aquece. As vogais vão junto do pássaro que está à minha esquerda, roubam-lhe as asas e voam – juntas, rumo à fonte. Lá vou eu.  


Soares Teixeira – 04-07-2013
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quarta-feira, 3 de julho de 2013

"ENQUANTO OS DEUSES DORMEM O SONO DOS JUSTOS" - Soares Teixeira


Enquanto os deuses dormem o sono dos justos, ao Sol nunca lhe pesam as pálpebras. Sinto-me amanhecer nestas palavras que vejo correr dentro de mim. Gosto disso. “Amanhecer é sempre uma bênção”, oiço o horizonte dizer. Respiro fundo estas outras palavras. Respiro-as porque acredito nelas e porque, lá no fundo, sinto que elas acreditam em mim. Há um certo tipo de leveza que me aproxima da matéria dos sentimentos. Sim, porque os sentimentos têm matéria. Acham estranho? Então perguntem aos rios, que são sentimento, se têm ou não têm matéria, e perguntem depois à Alegria se é ou não um rio. Se tiverem dificuldade em encontrar a Alegria, contemplem o amanhecer. Estou a falar, primeiramente, para mim mesmo - é óbvio. Para a roda que sou; o eixo, os raios e o resto. Mas falo também - é claro - para outros; outras rodas desta quadriga conduzida pelo Sol.


Soares Teixeira – 03-07-2013
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