quarta-feira, 16 de novembro de 2022

"NA ILHA POR VEZES HABITADA", JOSÉ SARAMAGO

 



NA ILHA POR VEZES HABITADA

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.



       José Saramago




domingo, 6 de novembro de 2022

"OS LUSÍADAS" - CANTO V - LUÍS DE CAMÕES



"OS LUSÍADAS" - CANTO V






Canto V

Continua a narração de Vasco da Gama. Conta agora como foi a viagem da Frota Lusa desde Lisboa até Melinde referindo-se aos fenómenos da natureza que naqueles desconhecidos mares e céus os nautas portugueses observaram: O Cruzeiro do Sul, O Fogo de Santelmo, A Tromba Marítima. Peripécia de Fernando Veloso entre os nativos africanos. Episódio do Gigante Adamastor, que pode ser dividido em três elementos: 1 – Teofania (encontro com uma divindade): surge uma grande tempestade, os nautas, temem pela sua sorte, avistamento do Gigante Adamastor; 2 – Prolepse: o poeta, em meados do séc. XVI, fala de acontecimentos passados, porém futuros para o Gama, no início desse mesmo século.; 3 – Écloga marinha: a paixão não correspondida de Adamastor por Tétis. Vasco da Gama refere-se ainda ao terrível e mortal escorbuto. Alegria pela chegada a Melinde e demonstração de admiração por parte dos melindanos pela tremenda aventura dos portugueses. O canto V termina com Camões a criticar a iliteracia dos seus conterrâneos. 





 

sábado, 15 de outubro de 2022

"DESPIU-SE DEFRONTE DO ESPELHO", JOAQUIM MURALE




POEMA DCCCL

DESPIU-SE DEFRONTE DO ESPELHO FRIO


despiu-se defronte do espelho frio

olhou-se demoradamente

analisou ruga a ruga a ruína a que chegara

o corpo descarnado

os seios pendentes e mirrados

os olhos mortiços

a cerviz vergada

o que por ela poderia alguém sentir?

náusea?

dó?

quem por ela poderia sentir algo?

doentes?

os rejeitados do mundo?

os velhos da sua idade?

e esses para que os quereria ela?

para chorarem a par?

finalmente o espelho deixara de lhe mentir

deixava de lhe servir

cuspiu asco

guardou as memórias numa caixa dourada

apagou o candeeiro

entregou-se às trevas

fechou-se na solidão e saiu na última paragem

 

 

Joaquim Murale, in “o ÀSPERO TEMPO DAS MARIONETAS”, pág 204

Seda Publicações - 2022 


 

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

DIA ESPECIAL

 

  Hoje, num dia especial em que afectuosamente me despedi de algo em que muito trabalhei coloco aqui esta foto, em que tenho na mão O MEU VW-PORCHE (o mítico e belíssimo Porche 914). Achei-o recentemente numa daquelas arrumações em que se descobre o que não se espera. Este Kit foi-me oferecido em miúdo e construi-o sózinho (e tem comando). Olho-o com saudade e uma longa ponta de ironia. A sua história dava um pequeno romance


 

e porque hoje fui surpreendido com uma honrosa manifestação de apreço a um poema meu, de 'Alguém' que admiro, aqui o deixo porque não está muito longe do acima dito.

AVENTURA PORTUGUESA
 
Entrou-nos na alma o som do mar
E fomos porque era forte o chamamento
Tinha a força de um encantamento
O azul que nos fazia sonhar
 
Na praia a espuma vinha-nos contar
Que lá longe, também nesse momento,
Alguém estava a perguntar ao vento
O que haveria para lá de tanto mar
 
Levados pela vontade de ir mais além
Fomos juntar as mãos da Humanidade
Abrindo os caminhos da Descoberta
 
Contámos ao mundo o que o mundo tem
Sempre longe, ao portado da saudade,
Mas ao lado das aves, de alma liberta
 
Soares Teixeira
 
 

domingo, 9 de outubro de 2022

"PARA ENFEITAR OS TEUS CABELOS," AGOSTINHO NETO

 

 

PARA ENFEITAR OS TEUS CABELOS
(À Maria Eugénia)

No nosso sangue crescem rosas
e no amor
e na saudade;
as rosas que murcham sobre o gelo
da nossa distância

E neste dia
crescerão sempre rosas

Se os nossos corações se estrangulam
nas grades
onde morre a liberdade
e se fatigam

Neste dia
crescerão sempre rosas

E se o inverno é longo,
é dentro de nós
que mergulham as raízes
pelas quais os homens
se alimentam.

Se o inverno é longo
e as vozes se cansam
é porque
o nosso caminho é único
– o amor.

Neste dia
crescerão sempre rosas

Irei buscá-las
às planícies mais longínquas
às montanhas menos acessíveis
aos abismos
à amizade
e à distância que nos une.

Neste dia crescerão
sempre rosas, rosas
muitas rosas sobre o nosso amor

Para enfeitar os teus cabelos.

8 de Março de 1956
in “Sagrada Esperança”, Agostinho Neto, Obra Poética Completa, página 97

 --

 Fonte do poema: https://agostinhoneto.org/poesias/para-enfeitar-os-teus-cabelos/ 

 

 

 

domingo, 25 de setembro de 2022

"HERANÇA" - SOARES TEIXEIRA

Soares Teixeira

    

HERANÇA

 

De uma estrela

herdei peixes irreverentes

que deslizam no sangue

e saem pelo olhar

e deslizam pelo olhar

e entram no sangue,

herdei também mãos diligentes

que fazem tranças a raios de luar

e penteiam cabeleiras de infinito

 

Daquilo que existe entre os astros

e de tudo o que é anterior a tudo

herdei uma linha

que anda sempre comigo;

num bolso, nas pálpebras, ou no gesto

- a linha do horizonte

 

De alguns deuses

herdei a carne do tempo

a ser rasgada por relâmpagos

– daí as minhas feridas,

de outros

herdei o mar para onde fui lançado

e onde tento sobreviver

em jangadas de palavras

como esta

- daí o caderno que me serve de pele

 

 

--------------------

Soares Teixeira - 21-09-2022 

(© todos os direitos reservados)