terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

"AQUELA VOZ" - Soares Teixeira









Aquela voz na raíz da paisagem
aquela voz que nos conheceu
antes de nascermos
chama-nos

Aquela voz que não ignora
as nossas asas
aquela voz
que é o nosso corpo
murmurado pelos espaços
que é o nosso espírito
a sair da boca aberta do tempo
chama-nos

Aquela voz
vinda de uma ilha na eternidade
aquela janela verde dos instantes
habitada pelo sangue solar
aquela voz viva que cavalga a palavra
e percorre os caminhos da unidade
aquela porta aberta pela vontade
do início e do além
chama-nos

Aquela voz é um barco
continuamente oferecido
navegar
é agradecer a dádiva




Soares Teixeira – 23-02-2014
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

"POEMA PARA DU FU" - Soares Teixeira




Du Fu



É bela a música que escuto
e vejo sair de uma flauta de bambu
Bela como aves libertas
na origem das distâncias
aves que se abandonam às perguntas do céu
e voam com corpos quase rarefeitos
são gansos a deslizar na flor do azul
felizes como as nítidas palavras
em que se transformam
quando chegam aos meus lábios,
palavras só minhas
que digo só para o meu olhar
De onde vêm essas aves? Para onde vão?
que rios delas se despediram?
que rios as receberão?
Num silêncio convertido em horizonte
voam como fábulas, lendas e mitos
e nenhuma idade vive entre as suas penas
Eternas, navegam no meu olhar
e sinto-lhes o mesmo ágil sossego
que imagino ter sentido Du Fu
o sábio poeta chinês
eleito pelos caminhos
cantado pelas montanhas
Ei-lo a passear nas margens do Yangtzé
entregue a pensamentos que fazia seus
mas que sabia pertencerem às coisas pensadas
porque o poeta sabia que tudo partilha
a íntima concavidade do tempo
aí onde tudo é poesia
onde tudo é unidade
uma unidade por vezes convertida em murmúrios
que podem ser árvores, peixes, aves,
rio, margens de verde pendente
ou som de flauta
Nas margens do Yangtzé
Du Fu sentia-se barco solitário
tudo era um barco solitário a flutuar
no dia e na noite
E os gansos a voar com corpos quase rarefeitos
na música que me liberta
para ser origem das minhas distâncias



Soares Teixeira – 18-02-2014
(© todos os direitos reservados)

sábado, 8 de fevereiro de 2014

"TU SABES" - Soares Teixeira








Tu sabes
que as flores têm nomes eternos
e neles somos o permanente instante
de beijos de ventos sem idade
que escrevem amor com a mesma certeza
com que os pássaros escrevem liberdade
Tu sabes
que assim em lento relâmpago
renascemos de bocas que se abraçam
e em silêncio pronunciam
o nome de todas as nossas companheiras
Tu sabes
que assim em extensa planície primaveril
renascemos absolutos e eternos
como os nomes das nossas mágicas irmãs
por nós em beijos nomeadas
Tu sabes
o que é molhar o corpo
com a música de um segredo só nosso
o que é bater com os nós dos dedos do olhar
na porta de outro olhar
o que é ser página que dança com outra página
em pátios suspensos neste e no próximo horizonte
o que é ser a verdade viva
de uma intensa transparência carnal
Tu sabes
o que é sermos além fruto além longe
além vento além mar
além carícia de fogo branco além casca azul
Tu sabes
o que é iluminarmos o Sol



Soares Teixeira – 08-02-2014
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

"LEMBRAS-TE?" - Soares Teixeira




Fotografia de Mendes Domingos





Lembras-te?
lembras-te quando habitávamos a mesma pálpebra?
lembras-te quando nos abrigávamos sob o mesmo além?
lembras-te daquela porta feita de certeza?
lembras-te daquelas janelas feitas de riso?
lembras-te?
quando nos iniciávamos na flor de todas as forças?
quando nos celebrávamos no sal de todas as esperanças?
Lembras-te da nossa casa?
aquela casa que construímos com sonhos e bandeiras
e cânticos nos pulsos e espaços nos lábios
e tesouros que sentíamos nas veias e gostávamos de partilhar?
lembras-te?
quando as cúpulas deixaram de ser negras?
quando as flores deixaram de ter as gargantas caladas?
oh céus dos nossos passos!
oh céus do nosso peito!
oh céus das nossas vozes!
devolvam-nos a luz com que cobríamos a matéria!
devolvam-nos a brisa onde renascidos ondulávamos!
devolvam-nos a centelha do desejo que nos fez felizes!
Como fomos férteis dentro daquela casa
como fomos abundantes no interminável chão daquela casa
como fomos tão nós mesmos
a respirar como cravos em promontórios
a respirar como mesas de pedras solares
a caminhar como montanhas
lembras-te?
era assim na nossa casa
era assim quando subíamos para a parte mais alta do nosso olhar
era assim quando nos sentíamos o perfume da liberdade
lembras-te?
lembras-te?
tens de te lembrar!
é preciso!
as cúpulas estão a escurecer com as cinzas dos nossos dias
as cúpulas estão a escurecer
as cúpulas estão a escurecer e as flores têm nós na garganta
tens de te lembrar!



Soares Teixeira – 05-02-2014
(© todos os direitos reservados)

domingo, 2 de fevereiro de 2014

"O POETA" - Soares Teixeira




Fotografia : © Magdalena Szurek





O ar chama-o pelo nome
e as suas asas partem o pão do horizonte
e o seu bico ergue o cálice cheio de azul
e bebe-o com o olhar

Os caminhos chamam-no pelo nome
e debaixo da sua poeirenta pele de búfalo
a sua carne possui a noite e o dia
e os passos possuem o zodíaco da palavra

Os outros chamam-no pelo nome
e as suas sandálias de ermita ouvem essas vozes
e no seu peito abrem-se gavetas de móveis rústicos
e nos seus lábios há sorrisos atrás de ameias

o poeta



Soares Teixeira – 02-02-2014
(© todos os direitos reservados)