sábado, 21 de fevereiro de 2015

"O LIVRO" - Soares Teixeira




Guardo um livro no bolso do olhar. Às vezes, quando deixo que em mim habite a ausência dos nomes ou quero ser um destino longe da assinatura de todas as coisas, abro-o. Pode acontecer que na cauda de um grito de gaivota venham sussurradas as palavras “és meu irmão”, pode acontecer que uma nuvem me segrede “sou a tua canoa”, pode acontecer que um rio se erga sobre a minha cabeça para me observar e me diga “segue-me até aos astros”. Praias, montanhas e desertos; lanço-os dentro do peito como búzios sobre a areia de uma praia e tudo o que não sei são amuletos que coloco ao pescoço do meu silêncio. Nessas alturas começo-me numa ardósia de espaço e se me tornar árvore e dos meus ramos nascerem frutos isso não me surpreende – entrego-os aos pássaros do inominável. Sei que as galáxias não têm todo o tempo da eternidade mas às vezes deixo-me ser eterno num segundo de paz.



Soares Teixeira – 21-02-2015
(© todos os direitos reservados)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

"ASSIM ÉRAMOS" - Soares Teixeira





Era manhã em nós

E o mar    
macio
ondulante ebriedade
a cobrir desassossegos e segredos

E os barcos    
a sulcarem as águas
em sôfrega ânsia
de se fundirem com o horizonte

E o outro mar ali ao pé
de olhos postos em nós
com os outros barcos ancorados
a descansar de si mesmos

E assim éramos
corpos líquidos
braços em viagem
riso de distâncias penetradas

pássaros de quimera



Soares Teixeira – 20-02-2015
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

"COMO ASTROLÁBIOS" - Soares Teixeira





Olhámo-nos como astrolábios
e fomos em beijo o mel da chama
e hoje, ainda claridade sem fronteiras
continuamos um no outro vento vivo

a tua sede de abelhas em fogo
puxa pelas mãos com que atravesso
a distância que não nos separa
a minha garganta a ondular na luz inaugural
habita o grito de em ti ser galope
de cavalo vermelho sobre o mar

como astrolábios olhamo-nos
ainda tão na proa de nós mesmos
e recordar aqueles que um dia fomos
é beber do vinho da nudez onde nos baptizámos



Soares Teixeira – 19-02-2015
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

"POR ENQUANTO" - Soares Teixeira





Noite

Quase me oiço
num além tempo
a cantar o instante
das novas águas
grávidas de navios de luz

Quase me vejo
num aroma de lugar
a viver a rosa
que recebe esta asa
que em segredo vou sendo

Quase me igualo
à incandescência
que habita
numa gota de olvido
que sabe que a praia virá

por enquanto
céu
mar
nesta ânfora de possível
que guarda o impossível

onde estou



Soares Teixeira – 18-02-2015
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

"AINDA" - Soares Teixeira





Manhã
o sol a libertar-se de cada coisa
o chão próximo dos deuses
no céu uma nuvem
lenta
para onde foram os pássaros
que se desprenderam das asas
voando apenas
em transparente existência
com forma de palavra
num vislumbre de poema
isso foi
já na polpa do descanso
lado a lado
mãos dadas
num sossego
de dedos em quase sono
isso foi
depois de nos termos consagrado
às laranjas e aos figos
que habitam os astros
libertando braços e pernas
como peixes atirados a um rio
ávido de mar
isso foi
depois  do vulcão
quando um no outro
esse mar chegou
isso foi
na praia
onde ainda caminhamos
leves aves
ainda a começar o mundo



Soares Teixeira – 12-02-2015
(© todos os direitos reservados)