domingo, 3 de julho de 2016

"UM DIA" - Soares Teixeira



Um dia
sem mais proa no olhar
os braços tombarão
como dois mastros vencidos
e nenhuma balsa
para o derradeiro gesto
nada

ar ausente da boca
frio em todos os tectos do corpo
pêndulo inerte
apenas o resto
o nada

onde os segredos do vento
onde o perfume do Sol
onde o cântico dos dias
no rosto que já não é vinha?

e nem uma pergunta muda dos astros
nada



Soares Teixeira – 03-07-2016
(© todos os direitos reservados)

sábado, 2 de julho de 2016

"ENCONTRO" - Soares Teixeira



Aquilo que tenho de meu
é o encontro dos sons de dois sinos
distantes um do outro
não só em lugar
mas também em tempo
sou toda a minha pele estendida
sobre os astros
e estou onde me acontece Sol

Escrevo cartas com o azul do céu
e com a vastidão dos oceanos
e lanço-as ao vento
para que mas venha entregar

Recebo-as
nos inícios
e no ponto de encontro

E regresso sempre
onde me espero



Soares Teixeira – 28-06-2016
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 28 de junho de 2016

"O IRREPRESENTÁVEL" - Soares Teixeira



Fernando Pessoa observa-se
nos outros que são ele? pergunto
e vice-versa,  responde uma lagarta
que desliza pelo canteiros dos instantes
reclino-me na cadeira do meu pensamento
olho para as mãos das pessoas e vejo névoa
uma névoa que encobre todos os possíveis
carícias e bofetadas, música e facas
o alfa e o ómega
o ser e o não ser
o tudo e o nada
num aperto de mãos tudo pode acontecer
um mundo que começa
um mundo que acaba
uma árvore que cresce
a lagarta acompanha-me através dos instantes
não tenho grande simpatia por lagartas, confesso
mas por esta sim, é útil ao meu ecossistema
alimenta-se vorazmente do meu excesso de pensamento
e isso é bom
come, come, lagarta
vai comendo as folhas verdes das minhas ideias
para que novas folhas nasçam na árvore que sou
e para que os caminhos permaneçam limpos
esta lagarta é um bicho-da-seda
como aqueles que tinha em criança numa caixa de camisas
e que alimentava com folhas de Amoreira
sim porque eu sou uma Amoreira
sempre fui
ainda não o tinha dito, pois não?
Levanto-me da cadeira e caminho ao encontro de Fernando Pessoa
observo-o observando-se e observando-me
e sinto-me pertença de um olhar alheio, o dele
e pertencer é ser…
a lagarta contorce-se e ri-se
Tudo é um teatro
e nós, para sermos nós, temos de ser o outro que nos compreenda
ou pelo menos tente
e tudo é estreia e tudo é ensaio geral e tudo é pano a cair
se todas as pessoas da sala, pensassem assim
quanta multiplicidade, quantas intercepções, quanta loucura
quantas mãos de cinza e sangue
trabalha lagarta trabalha vai comendo o meu excesso de ideias
        pausa     pausa     pausa    
É bom fazer pausas e recolher silêncio no corpo
ser apenas lábios a beber o ar
        leveza, transparência, serenidade
                    o irrepresentável
e depois partir
ir
com uma borboleta por companhia
E Fernando Pessoa?
olha, lá vai ele, em tanta gente que foi, que é, que somos
Às vezes gostava ser uma lagosta – são elegantes
mas acontece que sou Amoreira
e ainda bem
senão como poderia dar de comer ao bicho-da-seda dos meus instantes
Por agora adeus
vou fazer companhia aos astrolábios




Soares Teixeira –27-06-2016
(© todos os direitos reservados)

domingo, 26 de junho de 2016

FOTOGRAFIA DE SOARES TEIXEIRA E MARIA TERESA HORTA

Eu e Maria Teresa Horta na Feira do Livro de Lisboa. 11de Junho de 2016.

Autógrafo de Maria Teresa Horta, no Livro "Anunciações"


Capa do Livro "Anunciações", de Maria Teresa Horta


quinta-feira, 23 de junho de 2016

"ANTI-VÍRUS" - Soares Teixeira



No ano 2222
como serão os computadores?
não sei
sei que as flores serão iguais
e o mar também e o Sol e o firmamento
e os gatos quando atravessam o luar
assim como muitas coisas
próprias do bicho-homem
serão iguais:
o coçar o nariz, o bocejar,
o sentar, o levantar, o deitar
o satisfazer as necessidades fisiológicas básicas
e por aí…
igualzinho
e quanto ao amor
ao sonho, à fantasia
ao ódio, à inveja,
à traição?
iguais? Talvez não…
Quando as ciências da computação
usarem na perfeição a biologia molecular
e o sistema nervoso central
do bicho-homem
e muito do que ainda se está por inventar
como será esse
bicho-homem-computador?
Páro para pensar
naquilo de que hoje tanto se fala
e que dá pelo nome de
“Invasão da privacidade”;
escutas telefónicas, ataques informáticos,
etc…
e pergunto-me que privacidade,
que intimidade, que liberdade
que sinceridade, que humanidade
terá essa criatura neuro-bio-telemática?
esse programável algoritmo-psico-social?

(pode ser que me engane
talvez não venha a ser assim muito mau
- diz o meu lado optimista)

(Mas… e se o for?
porque o que tudo o que o bicho-homem faz
tem um lado mau
- contrapõe o meu lado pessimista)

Bom
de nada adianta especular
resta-me confiar no poder
das flores, e do mar
e do Sol e do firmamento
e dos gatos quando atravessam o luar
confiar nesse tremendo poder
poder cósmico
capaz de criar a maior das forças
a força da poesia

que tem sido ao logo dos tempos
um excelente anti-vírus
para as asas do dia a dia



Soares Teixeira –23-06-2016
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 20 de junho de 2016

"SEM DESTINO" - Soares Teixeira



Estranho
quando o frio agasalha a tristeza
já me tem acontecido
muito raro,
é preciso a alma estar como uma corda podre
quase a partir-se
apenas um último fio a aguentar todo o peso da existência
é uma solidão a engolir silêncio
por entre nós na garganta
o olhar sente
a chave perdida, a porta fechada, a sala vazia
os passos parecem maltratar o chão pisado
e tudo dói
mesmo as mãos suadas do tempo a descarregar instantes
     para o cais da vida
principalmente isso
não apetece nem falar à toa nem ser curiosidade em qualquer acaso
nada
apetece entrar num táxi invisível
ou numa rosa murcha
e ir
sem destino, sem explicação
para trás
deixar
abandonada no esquecimento
a mala
com a camisa puída da desilusão
e a lágrima sobre o arame farpado



Soares Teixeira –20-06-2016
(© todos os direitos reservados)