quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

"CONVITE" - Soares Teixeira







Olho-te

por trás da forma
está a estética do inexplorado
por trás do gesto
está a órbita da polpa
recosto-me numa almofada
que quer conhecer o meu calor
não sei em que palavras tenho a boca
nem em que argila tenho os dedos
moldo-te em música
hum…
que bom ser felino e poder voar
sabes…
tens um pijama igual ao meu
feito de desordem, sede e ar
aqui e ali o desenho de uma ilha inventada
que tal se nos despíssemos
para nos cobrirmos com o manto
de sedosa incandescência
que nos oferece aquela deusa
que caminha na praia do luar?



Soares Teixeira – 03-12-2014
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

"O DIA DA REVELAÇÃO" - Soares Teixeira








Creio
que nunca vês
as asas
nas minhas costas
quando escreves o meu nome
na forma como danças
dentro das palavras
de onde me chamas

vem
amo-te

e eu
colibri de fogo
vou
rápido
porque menos que isso
seria insuportável lentidão

mas hoje
não sei porquê
talvez
por me sentir
ânfora a derramar vinho lunar
sou lenta brasa
na intimidade dos mitos
e
touros sagrados
véus enfeitiçados
navios enamorados
rodeiam-me
envolvem-me
com coisas de mistério
e
embriagado de uma nova respiração
sou
de braços abertos
vagar
a rodar no meu eixo de desejo
hoje
em mim a revelação
hoje
próximo da chuva
que ainda não desceu do sono
asas beijam
o sorriso onde danças
de admiração



Soares Teixeira – 02-12-2014
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

"O SAXOFONE" - Soares Teixeira








O mundo
era o recanto de um bar
jazz como céu
cocktails como sol

E porque o mundo
é fecundo e nosso
aconteceu

Já não sei de que luar
eram feitas as rosas
que ascenderam
do fogo
com que seguraste
os meus lábios
com os teus
recordo-me
que um peixe
saltou
de um para outro mar
e sei
que em ti
fui beijo
em espiral de ar

Mais tarde
com o som do saxofone
ainda presença nua em nós
fomos como ele
puros
lembras-te?
puro gemido
a uma só voz



Soares Teixeira – 01-12-2014
(© todos os direitos reservados)

domingo, 30 de novembro de 2014

"CESTO DE BÚZIOS" - Soares Teixeira








Às vezes
súbitas ressonâncias acontecem
e ficam a vibrar
como ecos de sinos
a espreitar de frestas de horizonte
serão hera de recordações
a trepar pelas paredes do momento?

Por exemplo
agora

acabou de chegar a uma praia da memória
alguém em estranho silêncio
caminha lentamente sobre a água
e o seu corpo também é mar
de veias salgadas
de onde vem? para onde vai?
que vento leva ao ombro?
que luz lhe traça uma linha no rosto?
segue-o uma ave
de corpo vazio
ferida por uma seta de nada
violenta coisa nenhuma
atirada por um instante a morder os lábios
vou na ave
alcançarei aquele outro em mim?

Indiferente
tudo está de passagem
no cesto de búzios que vou sendo



Soares Teixeira – 30-11-2014
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 25 de novembro de 2014

"PALAVRAS DE UM RIO" - Soares Teixeira




Maqueta do Monumento ao Antifascista de Aljustrel - Museu Jorge Vieira, Beja



Vou-te dizer algo
que ouvi um rio
dizer a uma árvore

Dizia o rio:

“É urgente sentir
nas veias, nos dentes, na dor
é urgente sentir!

que há um sol suspenso
nas manhãs não ditas
e que é por ele que temos
de lutar
e que é por ele que temos
de atravessar as nuvens negras

Para lá
do lagar de sombras
onde é preparado o vinho do medo
estão palavras
vivas
como crianças
a correr de braços abertos

Não há que temer a infância
mesmo vendo-nos
sentados numa rocha à beira do nada
e com sentimento de fim

Podemos chegar junto das palavras
e apresentarmo-nos assim:
‘Olá
sou armazém de noite
mar de chamas
flor sem chegar à praia da raíz
argila de intimidade última
boca dentro da sede
de outra coisa que haja em mim’

Talvez então aconteça
que uma dessas palavras crianças
liberdade
venha ter connosco
e nos puxe pela mão
para uma dança de roda
com muitas das suas irmãs

Talvez então
já de poema vestido
frontais à luz
belos
como um pássaro
rubro e destemido
possamos afastar as nuvens negras

Talvez então
sejam ditas todas as manhãs”

O rio era um velho
ainda de luta acesa no olhar
a árvore era eu
sem saber como continuar



Soares Teixeira – 25-11-2014
(© todos os direitos reservados)