segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

"O SAXOFONE" - Soares Teixeira








O mundo
era o recanto de um bar
jazz como céu
cocktails como sol

E porque o mundo
é fecundo e nosso
aconteceu

Já não sei de que luar
eram feitas as rosas
que ascenderam
do fogo
com que seguraste
os meus lábios
com os teus
recordo-me
que um peixe
saltou
de um para outro mar
e sei
que em ti
fui beijo
em espiral de ar

Mais tarde
com o som do saxofone
ainda presença nua em nós
fomos como ele
puros
lembras-te?
puro gemido
a uma só voz



Soares Teixeira – 01-12-2014
(© todos os direitos reservados)

domingo, 30 de novembro de 2014

"CESTO DE BÚZIOS" - Soares Teixeira








Às vezes
súbitas ressonâncias acontecem
e ficam a vibrar
como ecos de sinos
a espreitar de frestas de horizonte
serão hera de recordações
a trepar pelas paredes do momento?

Por exemplo
agora

acabou de chegar a uma praia da memória
alguém em estranho silêncio
caminha lentamente sobre a água
e o seu corpo também é mar
de veias salgadas
de onde vem? para onde vai?
que vento leva ao ombro?
que luz lhe traça uma linha no rosto?
segue-o uma ave
de corpo vazio
ferida por uma seta de nada
violenta coisa nenhuma
atirada por um instante a morder os lábios
vou na ave
alcançarei aquele outro em mim?

Indiferente
tudo está de passagem
no cesto de búzios que vou sendo



Soares Teixeira – 30-11-2014
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 25 de novembro de 2014

"PALAVRAS DE UM RIO" - Soares Teixeira




Maqueta do Monumento ao Antifascista de Aljustrel - Museu Jorge Vieira, Beja



Vou-te dizer algo
que ouvi um rio
dizer a uma árvore

Dizia o rio:

“É urgente sentir
nas veias, nos dentes, na dor
é urgente sentir!

que há um sol suspenso
nas manhãs não ditas
e que é por ele que temos
de lutar
e que é por ele que temos
de atravessar as nuvens negras

Para lá
do lagar de sombras
onde é preparado o vinho do medo
estão palavras
vivas
como crianças
a correr de braços abertos

Não há que temer a infância
mesmo vendo-nos
sentados numa rocha à beira do nada
e com sentimento de fim

Podemos chegar junto das palavras
e apresentarmo-nos assim:
‘Olá
sou armazém de noite
mar de chamas
flor sem chegar à praia da raíz
argila de intimidade última
boca dentro da sede
de outra coisa que haja em mim’

Talvez então aconteça
que uma dessas palavras crianças
liberdade
venha ter connosco
e nos puxe pela mão
para uma dança de roda
com muitas das suas irmãs

Talvez então
já de poema vestido
frontais à luz
belos
como um pássaro
rubro e destemido
possamos afastar as nuvens negras

Talvez então
sejam ditas todas as manhãs”

O rio era um velho
ainda de luta acesa no olhar
a árvore era eu
sem saber como continuar



Soares Teixeira – 25-11-2014
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

"VOU SENDO" - Soares Teixeira







De quase em quase
vou sendo
quase recém nascido
de cada instante que me bebe
e vou ondulando para esquecer          
que debaixo do palácio das cores
há um rio subterrâneo
que nasce do silêncio das dores
às vezes sou deserto
onde poisam todos os ventos
às vezes floresta
onde crescem árvores de mim mesmo
às vezes mar
como estas palavras tão cheias de peixes
e é isso
vou ondulando como se voasse
na transparência de um jogo
onde sou jogado sobre uma mesa
sem matéria
a viajar no espaço
igual aos outros dados
cão cadeira búzio brinquedo
conforta-me saber que
ar escreve-se
com a tinta de um tinteiro
de vazio azul



Soares Teixeira – 20-11-2014
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

"EM VÃO" - Soares Teixeira








Um astro
na palma da mão?

que astro?
aquele ponto a brilhar?
aquela incandescente evidência
da linguagem dos espaços?
será ele um potro de luz
acabado de nascer?
será ele tumulto de fim
num arder de saudade
prestes a morrer?
ainda existe
aquele astro?
ou é apenas memória?
tempos passados
idos
e assim vividos
pelas distâncias
tempos desaparecidos
mas ainda futuros?

que mão
esta extremidade de braço?
este promontório de dedos?
esta contemplação de gesto?
será um barco antigo levado
pela mesma magia de vento
que soprou de panos a acenar?
será um músculo
a libertar alguém da monotonia?
será uma veia
envolta pela carne da liberdade?
ou é apenas uma sonâmbula
alada vontade de longe
sem relâmpago nas asas
nem universo no caminho?
será ainda ascensão de pálpebras?
será ainda apoteose de peito?
ou brasas quase apagadas
de um sol desfeito?

tudo em vão



Soares Teixeira – 18-11-2014
(© todos os direitos reservados)