quarta-feira, 15 de outubro de 2014

"APETECE-ME" - Soares Teixeira







Apetece-me ser o desenho de um navio
numa canção a subir colinas
apetece-me ser a maresia
no respirar de uma constelação
     e porquê?
este inventar sem margens
com mãos de vogais emplumadas
este querer outras areias
para caminhar entre conchas de consoantes
se tudo fosse um
aaaaaaaaaa
ou um
rrrrrrrrrr
mas não é
tudo
ééééééééééé
como aquela maçã cheia de memórias
minuciosas memórias
das coisas que o vento lhe segredou
e dos poemas
com que o luar a adormecia
como aquela mão cheia de amanhã
aquela mão antiga que acariciou o sol
num gesto que ainda há-de durar mais mil anos
como aquela dor de ser oásis sem palmeira
     não importa o porquê
há orvalho na música
e pardais entre os dedos
isso sim é importante
é ar
ar que me respira
sorrio como chão que assobia
e apetece-me
não sei que evasão
não sei que salvação
pouco importa
adeus navio adeus maresia adeus
agora sou peixe
vou para onde me chamam os corais

olá estrela
dá-me um beijo



Soares Teixeira – 14-10-2014
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

"OLHA BEM PARA MIM" - Soares Teixeira




© image : leschroniquesderorschach.blogspot.fr/



Acredito que a tua boca
não esteja apenas dentro da máscara
que só diz
o que a máquina lhe permite que diga
essa máquina terrível
esta máquina terrível
que cresce
e que rasga e esmaga e esconde e mente
acredito que a tua boca
ainda está nos pássaros e nas ondas abertas aos espaços
no sopro da música e na sublevação da palavra
ainda acredito
Olha bem para mim
tu dantes não eras assim

Leio-te nos olhos a palavra      sobreviver
as tuas pupilas soletram
incansavelmente, maquinalmente, invariavelmente
so bre vi ver
so bre vi ver
so bre vi ver
e tu cumpres a voz da máquina que esmaga
e com que esmagas
para não seres esmagado
so bre vi ver      baba a escorrer dos cantos dos lábios
so bre vi ver      uivo esverdeado a quebrar vitrais
so bre vi ver      esgar de lama de cemitério
aprendeste a mentir como se falasses verdade
aprendeste o gesto certeiro do cinismo
aprendeste a não ter remorso
ah o que te ensinaram
e o que tiveste de aprender
e o que mostras que tens de ser

Acredito que a tua boca
ainda esteja nos ventos que fomos
quero acreditar
mas se eu estiver tão profundamente enganado
então
em nome das palavras
um dia entre nós ditas com solar sinceridade
quando conversares comigo
se vires que não consegues libertar-te dessa droga
autorizo-te que mintas
mas, por favor
em silêncio



Soares Teixeira – 12-10-2014
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

"OS GATOS" - Soares Teixeira




Daisy


Os gatos acreditam no sexto sentido das estrelas, por isso a sua a respiração é a procura do peito da noite e nas suas caudas há rios onde se refletem relâmpagos e nas suas patas há abóbadas por decifrar e nos seus olhos há sempre luas cheias. Os gatos sabem onde encontrar grilos vestidos de cometa e anjos acocorados sobre colunas de topázio e barcos fenícios carregados de lendas e peixes de vento em praias a sonhar amantes. Gato que se preze tem o seu pé-de-meia: pelo menos sete saltos impossíveis em sete vidas para acontecer, sete histórias de piratas escritas no dorso – para quem as souber ler -, sete reinos transparentes com sete tronos à sua espera e ainda sete princesas nuas a dançar a dança das sete quimeras. Os gatos fazem perguntas às perguntas e respondem às respostas e bebem sede de silêncio e são silêncio de sede bebida e miam como se abrissem portas em sono côncavo. Os gatos, porque são gatos, entrelaçam os seus passos com dias a ser memória das esquinas e bocejam em geografias de outras existências e quando se sentam sobre as patas de trás são ausências expostas na sua ostensiva presença. Completos, incompletos; partida, chegada; segredo, revelação, concretos, abstratos; calma, alvoroço – gatos. Os gatos são inexplicáveis explicações da cor que vibra, da flor que canta, da mesa que flutua, da ave transformada em harpa, dos lábios feitos de uvas. Sei tudo isto porque um gato mo contou. Esse que tens no olhar.



Soares Teixeira – 09-10-2014
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 7 de outubro de 2014

"INICIAL" - Soares Teixeira








Inicial
o pássaro voa
a legenda é de silêncio
o resto
é tempo que se escoa
dentro do sonho
de uma rosa
eu
sempre horas da cabeça aos pés
abro as mãos
e deixo cair o tempo
com o sentimento e o sentir
de que às vezes é bom
recordar o futuro
à proa do passado
sem contraluz
sem praia adiada
de lágrima intacta
no baú da emoção
leve
com aquela leveza que consente
no peito uma gare de comboio
no olhar uma curva de adeus
na boca um sabor a viver
livre
sem estar legendado
sem estar rotulado
sem ser inverno da minha ilusão
inicial



Soares Teixeira – 07-10-2014
(© todos os direitos reservados)

domingo, 5 de outubro de 2014

"TRAPEZISTAS" - Soares Teixeira







Porquê um poema?
porque sou árvore e tenho sede
porque uma formiga se abre em leque
porque uma montanha cabe dentro da pupila
porque o mar é uma flor ao vento
   e os pássaros transportam deuses nos bicos

o poema purifica
toca o rio que percorre todas as distâncias
toca o ser e o não ser que habita debaixo da pele
toca a secreta e tumultuosa superfície dos corpos  
toca o peixe e o trigo que voam do teu olhar
   para o azul de onde se libertam todos os princípios

o poema sabe a astro
e escorre na garganta como luz e mel
e penetra na carne com intimidade de nuvem
e acaricia as veias que navegam nos dias
e revela à alma os mistérios que habitam
   na jovial liberdade das palavras

assombra
o poema
e é preciso que assombre
para que desassombrados sejamos
os tais trapezistas
   que as pálpebras nos pedem para ser



Soares Teixeira – 05-10-2014
(© todos os direitos reservados)