terça-feira, 18 de março de 2014

"BRINCADEIRA" - Soares Teixeira









Agora eu sou a Terra
e tu brincas
à volta da minha cintura
e bates palmas e dizes
“Um dois três
cheia de prata cheia de luz
cá estou eu outra vez”
depois sou eu
estendo os braços
dou três passos
e digo
“Um dois três
cheio de mar cheio de ar
cheio de mim também
cá estou eu
neste lugar e mais além”
e assim pela noite fora
um dois três ora tu
um dois três ora eu
Enlouqueci?
talvez
renasci?
tão bom
tornei-me criança?
saudades
É em criança
que melhor se brinca
melhor se flutua
não achas Lua?



Soares Teixeira – 19-03-2014
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 17 de março de 2014

"PALAVRA ANFÍBIA" - Soares Teixeira









Da cantilena das ondas nasce a palavra anfíbia e nela viaja aquele que olha para lugares distantes, para tempos remotos, e vê… vê! vê: grupos de raparigas dançarem uma dança de roda em torno de antiquíssimas oliveiras; cães que olham, como pessoas, para um velho sábio sentado num mercado e que fala pausadamente enquanto descansa de uma viagem que muitos pensam ter começado com os deuses e que acham não acabará nunca; homens com três quartas partes de vida passadas a cavalgar entre estepes e céu; outros homens com o mesmo tempo de vida entre céu e mar; outros ainda com esse mesmo tempo de existência entre sangue e vinho; outros toda a vida entre outros que julgam conhecer mas não conhecem; mulheres grávidas desses homens - dessas pedras a rolar pelos caminhos - e grávidas de mulheres que, como elas, serão mel e torres e vozes ao vento, rogando que ele se abra e receba os seus sonhos e as suas danças de roda. Nua cantilena com mais refrões de perguntas que refrões de respostas, cantilena sem rosto e com tantos rostos. Aqui se erguerá o palácio, diz um rei; aqui dormirei, diz um pastor. Aqui se erguerá o templo, diz um sacerdote ao tocar no solo com o seu bastão de ouro; sim, aqui é bom, diz ao pássaro o curandeiro, erguendo ao alto o seu colar de búzios. E todas estas palavras ou são escutadas pelo mar ou pelo vento que as vai dizer ao mar e o mar guarda-as dentro de si e os seus ombros e as suas bocas – que são as ondas – levam-nas aos ouvidos das praias. E a cantilena das ondas ascende à respiração daquele que olha o horizonte e na palavra anfíbia vai ao encontro, vai ver acontecer, vai acontecer… naquilo que foi, é, e será.




Soares Teixeira – 16-03-2014
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 10 de março de 2014

"SIGO O CAMINHO DAS CIGARRAS" - Soares Teixeira













Sigo o caminho das cigarras
nada detém os pássaros
que voam dentro das minhas veias
nem os rios que correm
das minhas pálpebras
Não sou um sonho
mas também não sou real
vou poisando nos segundos
como um pardal
íntimo das abóbadas do riso
dos ombros da luz
e da noite que escuta o desconhecido
Quando não estou num galho de tempo
desenho céus marinhos
em paisagens que ganho à claridade
Sigo o caminho das cigarras
levo no peito
a volúpia da liberdade




Soares Teixeira – 09-03-2014
(© todos os direitos reservados)



"CAMÉLIAS" - Soares Teixeira








Camélias
elegância viva
a voar no poema
canção vegetal
em repouso no belo
cântaros de paz
de onde brotam
as sílabas do amor
arte
de bem vestir os dias



Soares Teixeira – 05-03-2014
(© todos os direitos reservados)



"NO CASTELO DE GUIMARÃES" - Soares Teixeira







No Castelo de Guimarães
são tantas perguntas em que me transformo
que me acrescento ao granito e nele cresço
e como uma concavidade no espaço e no tempo
na flor do silêncio recebo o olvido
                  ebriedade
Sou o lugar dos nomes míticos
na minha respiração sinto a nitidez
de camadas de alianças e traições
de arcas pejadas de segredos e sangue
de espadas cobertas de cruzes e vozes
Do meu gesto surgem cavalos cobertos de cores
música a bater asas
gritos de estátuas jacentes
coroas a copularem coroas
olhos brasonados a selar pactos com o horizonte
Os degraus e as paredes oferecem-me um ar
que me quer ver
as torres e as ameias passam as mãos pelas minhas
e puxam-me
as portas e as janelas bebem olhares antigos
e olham-me
e os seus olhos são os de um vento carnal
Então foi aqui
digo, enquanto caminho
na longa galeria de mim mesmo
Sim, foi aqui
responde-me uma voz vinda do chão
Aqui Afonso sonhou Portugal



Soares Teixeira – 05-03-2014
(© todos os direitos reservados)



"ÂMAGO" - Soares Teixeira








sou
no rio que me atravessa
a viagem que começa
o retorno sem pressa

              sei
íntima gota de orvalho
escuto a voz das rosas
e passo a mão pelo céu

estou
na brisa que se expande
na praia que se estende
no mistério que me entende



Soares Teixeira – 24-02-2014
(© todos os direitos reservados)







terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

"AQUELA VOZ" - Soares Teixeira









Aquela voz na raíz da paisagem
aquela voz que nos conheceu
antes de nascermos
chama-nos

Aquela voz que não ignora
as nossas asas
aquela voz
que é o nosso corpo
murmurado pelos espaços
que é o nosso espírito
a sair da boca aberta do tempo
chama-nos

Aquela voz
vinda de uma ilha na eternidade
aquela janela verde dos instantes
habitada pelo sangue solar
aquela voz viva que cavalga a palavra
e percorre os caminhos da unidade
aquela porta aberta pela vontade
do início e do além
chama-nos

Aquela voz é um barco
continuamente oferecido
navegar
é agradecer a dádiva




Soares Teixeira – 23-02-2014
(© todos os direitos reservados)