Estou-me a ferir com música e sorrio de prazer. É bom sentir a pequena gota de emoção escorrer para o mundo. Invejo-a, invejo a minha pequena lágrima. É bom o belo. Oiço-a…sempre inicial… sempre íntima. Oiço-a… a música onde revivo o que vivi – pássaro, peixe, chaga, chama, chamamento. A música que tanto ouvia no mar que me vazou e encheu. Há lugares em que cada segundo é um poema dito muito devagar. Nalguns desses lugares pergunto-me a que distância estou da próxima estrada, da próxima esquina, da próxima casa, do meu corpo. Duas horas? dois minutos? Dois segundos? Há lugares assim; sendo não-lugares existem tão fortemente que se tornam mais reais que a vulgaridade do lugar ocupado pela âncora do ser – o corpo. Estou num desses lugares – e quero estar! Não sei quanto tempo me separa do ofício de voltar a ser eu; carnal, esculpido pelos meus passos. Dezembro, noite. Aqui, no convés do meu navio, sou um eu sem identidade e o meu pensamento é nudez de azul na distância – só isso. Oiço-a… a música onde balanço, a música onde me vejo e de onde me vejo, a música que me projecta e de onde me projecto. Ah… liberdade de ir com as formigas do tempo e de me infiltrar entre as ervas do mistério. Ah… prazer de sentir os perfumados óleos de enigma, que amorosamente recolho na taça em que me tornei. Abre-te! Rasga-te! Ordeno-te – abre-te fruto ausente! Obedece ao grito agudo e longo! Dentro de mim há luz por todos os lados, mais intensa ainda que a deste Sol a dizer que o dia está a começar. Cada onda está a meio caminho entre o princípio e o fim e todas escrevem uma carta inacabada. Ondulam algas, voam pássaros, céu sem nuvens. O navio vai, e eu vou com ele. Música… alegria… núpcias com o belo… dor de ti, belo. Água; mãe dos cânticos, filha do azul. Água; baptismo dos instantes, que me fazes sentir aparição, que me fazes sentir que nunca fui quem julgava ser. Água, que me perguntas tanta coisa, as tuas perguntas vão até aos meus locais mais sombrios, àqueles onde há demasiado musgo, mesmo àqueles que já são fragmento; tento-te responder, tento, mas como tu sou a escrita de uma carta inacabada. Ondas… navio…agora este violino, depois a orquestra, de novo o violino, olha a harpa, olha as flautas, os violoncelos, os clarinetes, trompas e trompetes, a percussão e todos, todos estes instrumentos - tantos, tantos peixes, todos a brilhar, neste mar, nestas ondas; serenas , solenes e trágicas. A que distância estou de mim? e da próxima ilha? Que dor de belo, que infinito a viver o meu instante, que eternidade a sonhar este meu oceano musical. Água feita de música - intimidade, unidade, ebriedade, majestosa delícia do amplo que me amplia. Rimsky-Korsakov, só tu me entendes não é verdade? Ah, meu irmão, como amo a tua Scheherazade. Para ti esta carta inacabada. Um abraço afectuoso do teu José.
Soares Teixeira – 03-12-2013
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