sábado, 2 de novembro de 2013

"DENTRO DE CADA UM DE NÓS" - Soares Teixeira








Dentro de cada um de nós há uma Lua que nos observa com olhar de antiquíssima fêmea fascinada com os nossos instantes. Ouvem-na respirar dentro do vosso peito? ela está lá, escondida e atenta - às vezes brilha, cresce, agiganta-se. Que nome lhe havemos de dar? razão... ideia… palavra... não sei. Talvez mergulhando dentro destes nossos lábios possamos ir ao seu encontro - olhá-la olhos nos olhos     sentir-lhe o cheiro      escutar o som dos seus passos      tocar-lhe no corpo      beber do seu leite. Depois podemos construir um barco de papel nele colocar a candeia transparente que não sabíamos ter na mão e ir pelo nosso primordial mar interior - ir, ir, ir – viver as mais improváveis navegações, sem nos querermos embriagar na descoberta de nós mesmos mas pressentindo que isso pode acontecer; olha! a infinita flor que nasce no corpo da sílaba, olha! a respiração das distâncias intactas dentro de novos pássaros, olha! a página a renascer do reino das veias, e ali olha! aquela resina de palavra antiga, ah! e além? vês? aquele vibrar de pálpebras… parecem revelar ancestrais pupilas nos andaimes do tempo, parecem as triunfais rosas leves que levam a beleza aos sonhos, aqueles sonhos de gente como nós, gente que se calhar éramos e seremos nós, gente de aquém e além agora. Agora… que é isso? Que significado tem? Neste percurso que iniciámos ao mergulhar dentro dos lábios, o que representa o agora? Agora fazemos nossa a carne dos espaços onde há e não há matéria, agora fazemos nosso o sangue que o tempo derrama no silêncio, agora fazemos nosso o prazer de consentir que as manhãs dos amanhãs acontecidos e por acontecer nos espreitem, agora confundimo-nos com a orla de todas as imanências e de todos os improváveis, agora somos a unidade e por isso somos também aquela Lua que nos observa com o seu olhar de antiquíssima fêmea fascinada com os nossos instantes. Sejam vocês mesmos - diz-nos ela – sejam vocês mesmos continuamente entornados como trigo a cair da ânfora que seguro nos braços. E então um novo pássaro descobre um atalho e todo o nosso corpo - mesmo o não adivinhado - e toda a nossa alma – mesmo a não adivinhada – sai dos nossos lábios num novo retorno, um retorno em palavra, palavra aberta; aberta como a flor do Hibisco.





Soares Teixeira – 02-11-2013
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 29 de outubro de 2013

"DÁ-NOS..." - Soares Teixeira








Dá-nos horizonte o aroma da abelha que em ti é sílaba de matutino feitiço, dá-nos distância a cor da romã que nos promete a palavra a brilhar na água dos instantes, dá-nos árvore o verbo - e que o verbo seja querer e que as tuas raízes estejam no nosso peito e que delas irrompa o mais marinheiro de todos os gritos. Dá-nos leveza do ar a margem onde vai beber o jovem tigre que nos corre nas veias, dá-nos dor de sermos trigo na tempestade o pão de música com que alimentamos a espera, dá-nos chuva o corpo que procuras – e que esse corpo seja aquele que também nós procuramos dentro de cada uma das nossas veias e na polpa de cada desejo; sim ele está lá. Dá-nos pomba inicial a espada viva dos nossos pulsos, dá-nos insondável fronteira a pedra para colocarmos o cálice que o sol no entregou, dá-nos porta de nós mesmos a vertigem de sermos nome no celeiro da liberdade; sim nós somos nome.




Soares Teixeira – 28-10-2013
(© todos os direitos reservados)

 

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

"LIFETIME PARTNER" - Johnson Tsang






Artist: Johnson Tsang.

Lifetime Partner-Porcelain cup and saucer.H:17cm.2009
Finalist, The 12th Carouge International Ceramics Competition 2009, Switzerland.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

"OS POETAS" - Soares Teixeira







Os poetas estão no arbusto da palavra
a primavera sabe-o
os poetas estão no cheiro do feno
a terra sabe-o
os poetas estão no noturno cântico das montanhas
a lua sabe-o
Bago a bago
pássaro a pássaro
duna a duna
os poetas vão pelos caminhos dos seus olhos
alimentam-se das palavras que encontram nos frutos
guiam-se pelas asas que os procuram
perdem-se pelos desertos a que entregam os passos
vão      os poetas
mapas sem dimensão
instrumentos sem peso
espaços sem medida
luz salgada dos oceanos espelhados
vão      os poetas
excesso de tudo o que sobra
de tudo o que falta
de tudo o que já não existe
grito do futuro contra o muro do agora
vão      os poetas
confidentes dos bosques e dos insetos
crianças enfeitadas com a música das manhãs
adivinhos de romãs ao pescoço e navios nos pulsos
pintores de astros nas vértebras dos dias
vão      os poetas
vivos vulcões com terramotos nas veias
súbitas acácias a festejar a luz
relâmpagos a morder o pescoço da noite
coelhos a saltar nas nuvens
vão      os poetas
sorriso madrugada eco carícia madressilva
colina pergunta pedra chuva casa medo
trigo sexo gume poeira praia pão
fechadura chave palavra poema liberdade
vão      os poetas

Os poetas são a sua condição
que é ir
simplesmente ir
por dentro de si mesmos
a cada instante morrendo e renascendo
da sombra que a sílaba faz luz
das cúpulas do vento das nascentes do ar
da espantosa claridade da viagem
ir
simplesmente ir
viajar no mistério que espreita por detrás da palavra
ir
simplesmente ir
ao encontro de algo ou de alguém
a que possam simplesmente
dar a mão



Soares Teixeira – 23-10-2013
(© todos os direitos reservados)

domingo, 20 de outubro de 2013

"O COLAR" - Soares Teixeira

 
 
 



Sobre a pele apenas trazias
um colar de gotas de água
bebi-as uma a uma
e os meus lábios eram
os de um bezerro antigo
sedente
e ávido por quebrar
o fio do tempo
Depois
veleiro com casco de hoje
e proa de amanhã
naveguei
pelo teu fremente abandono
até que chegou o sagrado instante
em que me tornei repuxo
e o teu corpo foi o meu céu
e a minha força vital
alcançou os teus mais íntimos astros
Quando ficámos lado a lado
de mãos dadas
deitados sobre a relva
fresca e matinal
os nossos dedos
foram felizes migalhas
oferecidas aos pardais

 

Soares Teixeira – 19-10-2013
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

"CONTINUAREI" - Soares Teixeira







Continuarei o desencontro
entre este leite de silêncio
que alimenta
a ausência do instante
e              o furor do peixe
a espalhar caos e excesso
por entre anémonas
que desconhecem outros mares

Continuarei ânfora de encantos
encostada à lendária árvore
da lendária ilha
algures no navio dos séculos
e              sol a beijar
a festa dos meus dias
celebrada nos telhados de templos
poisados nas pálpebras dos promontórios

Continuarei a respirar
a névoa de espelhos longínquos
que ondulante
me acaricia os lábios
e              a rasgar os caminhos
com o meu bafo de touro de bronze
as minhas garras de tigre alado
as minhas patas de centauro esfomeado

Continuarei
enseada e navegação
solidão e sextante
círio e relâmpago
chão e asa

Aqui e aos ombros de todo o lado
Continuarei
boneco de corda dentro de caixa de cristal
arlequim a sacudir as grades da vida
intacto no todo e também em cada bocado
Continuarei
assim mesmo
com duas janelas no peito
duas portas nos joelhos
e um outro que sou eu
nas veias onde vou semeando
aquele que há-de nascer
Continuarei
até quando?
não sei
talvez até outro alvorecer



Soares Teixeira – 16-10-2013
(© todos os direitos reservados)

"O MEU CAMINHO" - Soares Teixeira








Negro, és hóspede do pensamento. Talvez quilha de navio a sulcar a superfície da consciência. Lá em baixo anémonas e corais ondulam no olhar. Alguns peixes também. No reino das estátuas submersas há harpas mudas no cimo de precipícios e ânforas a espalhar azeite destinado a oferendas. Ondulam reflexos de espelhos atravessados por segredos desterrados. Algas enrolam-se à aliança que atravessa o oceano que existe entre as têmporas, que existe entre o horizonte e o mito, que existe entre o nome e a máscara. Solenidade do vazio que regressa à ausência, touro que procura a raça que habitou as primeiras grutas, antiquíssimo porto de manhãs libertas do tempo. Enfeitados de negro os braços penetram no interior do corpo onde tudo é ferozmente íntimo, onde os ossos são mastros de veleiros sem nome, onde o sangue é o eterno meio-dia de um céu sem gaivotas, onde a carne é uma superfície líquida com enseadas no gesto, e onde os músculos são salas de palavras ditas e de palavras não ditas. Diz-me o teu nome para te nomear, negro. Diz-me, negro, o que prometes e de que geografia é feita a tua túnica, a túnica que vestes na tua boda, na boda que celebras com os que aceitam o teu abraço. Se não me disseres como te chamas, se não me disseres uma palavra que seja, então a hora é minha. Subirei os meus degraus de interrogação até que eles se tornem certeza, subirei depois – de uma forma que só eu sei - ao vértice de mim mesmo. Uma última vez chamarei por ti. Uma última vez. Então, se a esse chamamento derradeiro não me responderes, dar-te-ei um nome, dar-te-ei um rosto, e prestar-te-ei culto. Essa é a minha vingança, o meu caminho para os astros.



Soares Teixeira – 14-10-2013
(© todos os direitos reservados)