segunda-feira, 29 de setembro de 2025

A NOITE - LUÍS MIGUEL NAVA

 



A NOITE

A noite veio de dentro, começou a
surgir do interior de cada um dos objectos e a
envolvê-los no seu halo negro. Não tardou que as trevas
irradiassem das nossas próprias entranhas, quase que
assobiavam ao cruzar-nos os poros. Seriam umas duas ou três
da tarde e nós sentíamo-las crescendo a toda a
nossa volta. Qualquer que fosse a perspectiva, as
trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que, apesar de
a noite também se desprender das coisas, havia nela
algo de essencialmente humano, visceral. Como
instantes exteriores que procurassem integrar-se na trama
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da
tarde, num estertor, a emergir intermitentemente à
superfície das coisas. Foi nessa altura que a visão se
começou a fazer pelas raízes. As imagens eram sugadas a
partir do que dentro de cada objecto ainda não se
indiferenciara da luz e, após complicadíssimos processos,
imprimiam-se nos olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então
a custo a treva nasalada.


Luís Miguel Nava 
(Viseu, 29 de Setembro de 1957 - Bruxelas, 9 de Maio de 1995)




sexta-feira, 15 de agosto de 2025

TERNURA - DAVID MOURÃO FERREIRA

 




TERNURA

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

David Mourão-Ferreira





quarta-feira, 6 de agosto de 2025

HIROSHIMA 06-08-1945 - SOARES TEIXEIRA

 

HIROSHIMA

A 6 de agosto de 1945 foi lançada sobre a cidade japonesa de Hiroshima a primeira bomba nuclear da 
História. Estima-se que 70 mil pessoas tenham morrido imediatamente e cerca de 60 mil, vítimas de sequelas, nos meses seguintes.



HIROSHIMA, 06-08-1945
 
 
Átomos apocalípticos
vomitam um clarão a estrondear
 
A explosão é um cortar de gargantas
ao espaço e ao tempo
 
Olhos, portas e árvores
são arrancados com febris dedos
de ensurdecedores gritos de luz
e tudo fica carcaça
 
Hiroshima
arde até aos ossos alucinados
 
A memória contorce-se
em lancinante grito de aviso
 
 
Soares Teixeira – 06 de Agosto de 2025
(© todos os direitos reservados)



segunda-feira, 28 de julho de 2025

POEMA EM LINHA RECTA - ÁLVARO DE CAMPOS

 


POEMA EM LINHA RECTA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.



Álvaro de Campos

(heterónimo de Fernando Pessoa)

s.d.

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

  - 312.


sexta-feira, 27 de junho de 2025

A FALÉSIA - LAUREN MENDINUETA

 



A FALÉSIA
 
A casa estava ancorada
à beira da falésia
mais alta do mundo.
Durante as tempestades
o vento empurrava-a
para a garganta do mar.
O abismo habitava
junto das nossas camas,
aberto, húmido e insaciável
como a minha fome de amor,
como a minha sede de terra firme.
As noites eram longas
para a costureira insone,
a jovem mulher de costas dobradas,
cabeça cravada no tecido
e os olhos cansados
à luz de uma vela quase eterna.
Essa jovem costureira era a minha mãe,
a mesma que coseu com o seu fio de voz
o meu vestido de poeta.
 
Lauren Mendinueta



quarta-feira, 18 de junho de 2025

TERESA RITA LOPES

 

SOARES TEIXEIRA E TERESA RITA LOPES
(Soares Teixeira e Teresa Rita Lopes)


Teresa Rita Lopes (1937-2025)

Teresa Rita Lopes foi uma muito destacada intelectual sobejamente conhecida do panorama literário português e um nome determinante para quem se interessa pela Obra de Fernando Pessoa. Professora Catedrática, pessoana de referência, dramaturga, poeta, ensaísta, Teresa Rita Lopes orientou toda a sua vida para a Cultura tendo sido fundadora do Instituto de Estudos sobre o Modernismo. Da sua obra poética refira-se: Os dedos os Dias as Palavras (1987); Por assim Dizer (1994); Cicatriz (1996); Afectos (2000); Jogos, Versos e Redacções (2001); A Nova Descoberta de Timor (2002); A Fímbria da Fala (2002); O Sul dos Meus Sonhos (2009).Como dramaturga deixou-nos obras como: Três Fósforos (1962); Sopinhas de Mel (1981); Rimance da Mal Maridada e Sopinhas de Mel (1994); Andando andando (1999); Esse tal Alguém (2001); As Barbas de Sua Senhoria (2003); A Asa e a Casa (2004)Ao longo da sua carreira, foi premiada com vários prémios, a destacar: 1987 - Prémio Cidade de Lisboa, pela obra Os dedos, os dias, as palavras; 1996 - Prémio Eça de Queiroz de Poesia, pela obra Cicatriz; 2001 - Grande Prémio de Teatro da Associação Portuguesa de Escritores, pela obra Esse tal Alguém. Foi também uma Amiga com quem troquei visões poéticas e uma Mestra que jamais esquecerei.


segunda-feira, 12 de maio de 2025

QUANDO DE MINHA MÁGOAS A COMPRIDA - LUÍS DE CAMÕES

 



QUANDO DE MINHAS MÁGOAS A COMPRIDA


Quando de minhas mágoas a comprida

Maginação os olhos me adormece,

Em sonhos aquel' alma m' aparece

Que para mim foi sonho nesta vida.


Lá nüa soidade, onde estendida

A vista pelo campo desfalece,

Corro par' ela; e ela então parece

Que mais de mim se alonga, compelida.


Brado: - Não me fujais, sombra benina!

Ela, (os olhos em mim c'um brando pejo,

Como quem diz que já não pode ser),


Torna a fugir-me; e eu gritando: - Dina...

Antes que diga: - mene, acordo, e vejo

Que nem um breve engano posso ter.



Luís de Camões





terça-feira, 29 de abril de 2025

OBRIGADO FRANCISCO - SOARES TEIXEIRA

 



OBRIGADO, FRANCISCO
 
A ti,
insubmisso poema
a desafiar espadas e emboscadas,
serena rebeldia
a plantar cravos em precipícios,
relâmpago de revolução
com sorriso de Cristo sem filtro,
gigante saído do infinito
a caminhar com a fé dos rios
 
A ti
peregrino, penitente,
solidário, solitário,
veleiro de luta, mapa de coragem,
herói dos céus da alma
 
A ti
Francisco
eu agradeço
 
 
Soares Teixeira

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THANK YOU, FRANCIS


To you,
insubmissive poem
defying swords and ambushes,
serene rebellion
planting carnations on precipices,
lightning of revolution
with the smile of Christ without a filter,
a giant from infinity
walking with the faith of rivers

To you
pilgrim, penitent,
in solidarity, solitary,
sailboat of struggle, map of courage,
hero of the heavens of the soul

To you
Francis
I thank you


Soares Teixeira


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GRAZIE, FRANCESCO

A te,
poesia insubordinata
che sfida spade e agguati,
serena ribellione
piantando garofani sui precipizi,
lampo di rivoluzione
con il sorriso di Cristo senza filtro,
un gigante dell'infinito
che cammina con la fede dei fiumi

A te
pellegrino, penitente,
solidale, solitario,
veliero della lotta, mappa del coraggio,
eroe dei cieli dell'anima

A te
Francesco
ti ringrazio


Soares Teixeira

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GRACIAS, FRANCISCO

A ti,
poema insumiso
desafiando espadas y emboscadas
serena rebelión
plantando claveles en los precipicios,
relámpago de revolución
con la sonrisa de Cristo sin filtro
gigante del infinito
caminando con la fe de los ríos


A ti
peregrino, penitente
solidario, solitario,
velero de lucha, mapa de coraje,
héroe de los cielos del alma


A ti
Francisco
te lo agradezco


Soares Teixeira





sexta-feira, 21 de março de 2025

JARDIM DO MAR - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN - SOARES TEIXEIRA

 



Jardim do Mar

Vi um jardim que se desenrolava
Ao longo de uma encosta suspenso
Milagrosamente sobre o mar
Que do largo contra ele cavalgava
Desconhecido e imenso.

Jardim de flores selvagens e duras
E cactos torcidos em mil dobras,
Caminhos de areia branca e estreitos
Entre as rochas escuras
E aqui além, os pinheiros
Magros e direitos.

Jardim do mar, do sol e do vento,
Áspero e salgado,
Pelos duros elementos devastado
Como por um obscuro tormento:
E que não podendo como as ondas
Florescer em espuma,
Raivoso atira para o largo, uma a uma,
As pétalas redondas
Das suas raras flores.

Jardim que a água chama e devora
Exausto pelos mil esplendores
De que o mar se reveste em cada hora.

Jardim onde o vento batalha
E que a mão do mar esculpe e talha.
Nu, áspero, devastado,
Numa contínua exaltação,
Jardim quebrado
Da imensidão.
Estreita taça
A transbordar da anunciação
Que às vezes nas coisas passa.


Sophia de Mello Breyner Andresen


quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

A NOITE - LUÍS MIGUEL NAVA

  A NOITE A noite veio de dentro, começou a surgir do interior de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro. Não tardou que...