domingo, 25 de agosto de 2019

"SONETO DOS QUARTOS DE ALUGUER", DAVID MOURÃO-FERREIRA




SONETO DOS QUARTOS DE ALUGUER


O amor é só de quem os olhos cerra
no desalmado instante da entrega.
Cerrai-vos, olhos meus, antes que cega
Vos cegue a lucidez que nos faz guerra.

Cerrai-vos, olhos meus, que os indiscretos
são punidos com leis muito severas…
Cerrados, sentireis… que primaveras!
Abertos, que vereis senão objectos?

E que abjectos objectos! tão prosaicos:
tapetes de aluguer com flor’s manchadas;
entre os pés do biombo, continuadas
as tábuas do soalho por mosaicos…

…Sempre esse frio sórdido, a seguir
ao fogo em que nos qu’remos consumir!



David Mourão-Ferreira, in “Obra Poética”

sábado, 24 de agosto de 2019

"SONETO DO CATIVO", DAVID MOURÃO-FERREIRA








SONETO DO CATIVO

Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encaminhamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso! 


David Mourão-Ferreira, in “Obra Poética”