domingo, 13 de março de 2022

"TANTO" - SOARES TEIXEIRA


Sei que em certos momentos

não gostas

de palavras vestidas de uniforme

eu também não

E o que pode ser o uniforme

numa palavra?

A própria palavra? A forma como é dita?

E o que é dizer?

 

Sei que, como eu, em certos momentos

gostas de ser anterior às palavras;

dizer com o sentir – apenas,

e para isso usar uma linguagem

mais duradoura que qualquer palavra

por isso

este silêncio, as mãos dadas, o olhar

- e saber que tanto assim é dito

 

 

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Soares Teixeira-13-03-2022

(© todos os direitos reservados)

 

 

quarta-feira, 9 de março de 2022

"POEMA DO ALEGRE DESESPERO", ANTÓNIO GEDEÃO

 


 

POEMA DO ALEGRE DESESPERO

Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?
 
 
António Gedeão 


 

sábado, 5 de março de 2022

HINO DA UCRÂNIA - ORQUESTRA GULBENKIAN

 

ONTEM, 04-03-2022, A ORQUESTRA GULBENKIAN, DE PÉ, ANTES DO PROGRAMA ANUNCIADO, INTERPRETOU O HINO DA UCRÂNIA. O PÚBLICO ESCUTOU IGUALMENTE DE PÉ E APLAUDIU PROLONGADAMENTE. COMO FUNDO UMA IMENSA CORTINA PRETA EM SINAL DE LUTO QUE SE ABRIU APÓS A HOMENAGEM, REVELANDO O ESPLENDOROSO JARDIM. ESTIVE LÁ

 

 
 
 

 

terça-feira, 1 de março de 2022

"CONTEMPLAÇÃO" - SOARES TEIXEIRA

 

Olho o mar

com memórias incrustadas no olhar

 

Pergunto ao mar

e sou transportado pela pergunta

 

Olho o mar

e o tempo deixa de o ser;

escorrega-me do ombro

como a alça de um saco

e eu fico mais leve

 

Pergunto ao mar

e os lábios deixam de o ser;

fazem-se pássaros

a chamar por outros pássaros

e eu deixo-me ir

 

 

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Soares Teixeira-01-03-2022

(© todos os direitos reservados)

 

 

domingo, 27 de fevereiro de 2022

"VOU!" - SOARES TEIXEIRA


Ficar?

Ficar é ser viela empoeirada

onde cada vez mais pó se aglomera

Não, eu não quero ficar em mim

para, no máximo, emigrar

para memórias e reflexos do que fui

Não quero ser floresta petrificada

O que eu quero

são os gritos das aves aquáticas,

são os olhares dos cavalos selvagens,

são as cores das cidades cosmopolitas,

são os cheiros do fim do mundo,

é sentir o ar carregado de mistério

Entardecer a vida

como um navio amarrado ao cais?

Olhar o céu e o mar

como mendigo de azul?

Tornar-me habitante

de ecos dos meus passos no silêncio?

Não!

Quero a minha alma sempre acesa,

pronta para o próximo romance

entre mim o horizonte

Quero a minha inquietação

em incessante procura

de astros extraviados

Quero ter gestos ousados

para tornar minha realidade

as miragens desfocadas

Neste, que sou,

não há apenas o que fui,

ou  vou sendo

Neste que sou

há uma multidão que avança

e à sua passagem

levanta do chão 

sonhos caídos

Neste, que sou,

não fico!

Neste, que sou,

ordeno-me a ir!

E vou!

 

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Soares Teixeira-27-02-2022

(© todos os direitos reservados)

 

 

sábado, 26 de fevereiro de 2022

"O QUE A POESIA NOS TRÁS" - SOARES TEIXEIRA

 

A poesia traz-nos coisas

que podem ser incompreensíveis

para alguns – até perigosas

e essas coisas podem ser

avenidas calcetadas a luar

ou pássaros psíquicos

a levantar voo de ponteiros  

cansados dos seus relógios

 

Isso, que a poesia nos trás,

e que pode por muitos

ser considerado delito,

é um convite para que o olhar

abra portas de armários

e deslize para outra dimensão

Isso, que a poesia nos trás,

é a liberdade

 

 

 

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Soares Teixeira-26-02-2022

(© todos os direitos reservados)

 

 

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

"MEDO" - SOARES TEIXEIRA

 

Gosto do infinito

e, de à minha maneira, o imitar

sabendo que jamais o conseguirei

mas hoje não me sinto disponível

para gostar do infinito;

hoje sinto o infinito engarrafado

e não quero imitá-lo,

porque talvez conseguisse


Eu, que gosto tanto do infinito

e, de à minha maneira, o imitar,

mesmo sabendo que jamais passarei

de passos descalços no intervalo

de dois nadas,

hoje sinto-me uma gaveta cheia

de talheres inúteis

porque dentro da minha boca

volumosas grades ocupam todo o espaço


O ar jovem dos instantes não existe,

os lugares estão cabisbaixos, tristes,

as coisas, sem dedos, não me tocam


Sombra que se cansa a si própria

Tempestade a despertar de um sono

Nem as flores são como é seu costume


Gosto do infinito


Gosto de ficar à escuta das respostas

às minhas perguntas,

e hoje isso não é possível

porque não consigo 

escutar essas  respostas,

hoje os sons são outros,

hoje não me consigo ver longe,

naquele ainda muito longe,

naquele longe que nunca chega,

naquele longe que me chama,

naquele longe onde gosto de viajar,

hoje há um peso onde não me aguento

existir


Tenho medo

E eu preciso tanto do infinito


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Soares Teixeira-25-02-2022

(© todos os direitos reservados)


(a pensar na guerra na europa de leste)