segunda-feira, 13 de outubro de 2014

"OLHA BEM PARA MIM" - Soares Teixeira




© image : leschroniquesderorschach.blogspot.fr/



Acredito que a tua boca
não esteja apenas dentro da máscara
que só diz
o que a máquina lhe permite que diga
essa máquina terrível
esta máquina terrível
que cresce
e que rasga e esmaga e esconde e mente
acredito que a tua boca
ainda está nos pássaros e nas ondas abertas aos espaços
no sopro da música e na sublevação da palavra
ainda acredito
Olha bem para mim
tu dantes não eras assim

Leio-te nos olhos a palavra      sobreviver
as tuas pupilas soletram
incansavelmente, maquinalmente, invariavelmente
so bre vi ver
so bre vi ver
so bre vi ver
e tu cumpres a voz da máquina que esmaga
e com que esmagas
para não seres esmagado
so bre vi ver      baba a escorrer dos cantos dos lábios
so bre vi ver      uivo esverdeado a quebrar vitrais
so bre vi ver      esgar de lama de cemitério
aprendeste a mentir como se falasses verdade
aprendeste o gesto certeiro do cinismo
aprendeste a não ter remorso
ah o que te ensinaram
e o que tiveste de aprender
e o que mostras que tens de ser

Acredito que a tua boca
ainda esteja nos ventos que fomos
quero acreditar
mas se eu estiver tão profundamente enganado
então
em nome das palavras
um dia entre nós ditas com solar sinceridade
quando conversares comigo
se vires que não consegues libertar-te dessa droga
autorizo-te que mintas
mas, por favor
em silêncio



Soares Teixeira – 12-10-2014
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

"OS GATOS" - Soares Teixeira




Daisy


Os gatos acreditam no sexto sentido das estrelas, por isso a sua a respiração é a procura do peito da noite e nas suas caudas há rios onde se refletem relâmpagos e nas suas patas há abóbadas por decifrar e nos seus olhos há sempre luas cheias. Os gatos sabem onde encontrar grilos vestidos de cometa e anjos acocorados sobre colunas de topázio e barcos fenícios carregados de lendas e peixes de vento em praias a sonhar amantes. Gato que se preze tem o seu pé-de-meia: pelo menos sete saltos impossíveis em sete vidas para acontecer, sete histórias de piratas escritas no dorso – para quem as souber ler -, sete reinos transparentes com sete tronos à sua espera e ainda sete princesas nuas a dançar a dança das sete quimeras. Os gatos fazem perguntas às perguntas e respondem às respostas e bebem sede de silêncio e são silêncio de sede bebida e miam como se abrissem portas em sono côncavo. Os gatos, porque são gatos, entrelaçam os seus passos com dias a ser memória das esquinas e bocejam em geografias de outras existências e quando se sentam sobre as patas de trás são ausências expostas na sua ostensiva presença. Completos, incompletos; partida, chegada; segredo, revelação, concretos, abstratos; calma, alvoroço – gatos. Os gatos são inexplicáveis explicações da cor que vibra, da flor que canta, da mesa que flutua, da ave transformada em harpa, dos lábios feitos de uvas. Sei tudo isto porque um gato mo contou. Esse que tens no olhar.



Soares Teixeira – 09-10-2014
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 7 de outubro de 2014

"INICIAL" - Soares Teixeira








Inicial
o pássaro voa
a legenda é de silêncio
o resto
é tempo que se escoa
dentro do sonho
de uma rosa
eu
sempre horas da cabeça aos pés
abro as mãos
e deixo cair o tempo
com o sentimento e o sentir
de que às vezes é bom
recordar o futuro
à proa do passado
sem contraluz
sem praia adiada
de lágrima intacta
no baú da emoção
leve
com aquela leveza que consente
no peito uma gare de comboio
no olhar uma curva de adeus
na boca um sabor a viver
livre
sem estar legendado
sem estar rotulado
sem ser inverno da minha ilusão
inicial



Soares Teixeira – 07-10-2014
(© todos os direitos reservados)

domingo, 5 de outubro de 2014

"TRAPEZISTAS" - Soares Teixeira







Porquê um poema?
porque sou árvore e tenho sede
porque uma formiga se abre em leque
porque uma montanha cabe dentro da pupila
porque o mar é uma flor ao vento
   e os pássaros transportam deuses nos bicos

o poema purifica
toca o rio que percorre todas as distâncias
toca o ser e o não ser que habita debaixo da pele
toca a secreta e tumultuosa superfície dos corpos  
toca o peixe e o trigo que voam do teu olhar
   para o azul de onde se libertam todos os princípios

o poema sabe a astro
e escorre na garganta como luz e mel
e penetra na carne com intimidade de nuvem
e acaricia as veias que navegam nos dias
e revela à alma os mistérios que habitam
   na jovial liberdade das palavras

assombra
o poema
e é preciso que assombre
para que desassombrados sejamos
os tais trapezistas
   que as pálpebras nos pedem para ser



Soares Teixeira – 05-10-2014
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

"JARDIM DO ALÉM" - Soares Teixeira







Com um beijo
transformaremos
o jardim branco
que entre nós
ainda existe
e um no outro
seremos a líquida rosa
que dará cor
às flores que perguntam
ao limiar do horizonte
para quando
a prometida água solar

Olha-me
olhos nos olhos
é fácil
há tempo no tempo
para que o nosso olhar
abra as portas dos instantes
é fácil
basta querermos ser o uivo sideral
de um lobo renascido
basta querermos ser o interior
de um peixe em movimento
Olha-me
olhos nos olhos
de flauta para flauta
de lua para lua
de nascente para nascente
de resina para resina
de incêndio para incêndio
Olha-me
olhos nos olhos
como se as nossas pupilas fossem mãos
no cimo de uma montanha
erguida sobre as costas de um insecto
que sem saber a transporta
     fácil
     diria se lhe preguntássemos
como se as nossas pupilas fossem mãos
no oásis de um deserto
unidas pela sombra de uma palmeira a dançar
sobre os segredos das noites e dos dias
     fácil
     diria se lhe perguntássemos
Olhos nos olhos
olha-me como quem vê
para lá para lá do musgo que cresce na pedra
para lá do que passa e do que fica
olha-me como quem procura
e procurando se deixa procurar
Olhos nos olhos
caminhos a voar pelo ar
que floresce da atmosfera
cisnes com asas de harpas
a sussurrar sons de estrelas
vitória dos cálices à beira-mar
cantada por piratas e poetas
firmamento das regiões humanas
onde cintilam corações prestes a nascer
Olhos nos olhos
     fácil
     dizem as aves
Esperar para quê?
para quê guardar o sopro da palavra?
para quê adiar o relâmpago sobre o mar?
Não vamos fazer esperar mais
a página vazia de gotas, auroras e poentes
não vamos guardar mais
a luz dentro dos pulmões
não vamos parar relógios de sangue e carne
ávidos de versos a libertar pardais
abracemo-nos
membranas que somos da incandescência
espirais que somos de cavalos a galope
verbo que somos de mundos a emergir
abracemo-nos pois
como quem abraça o sol que de si nasce
abracemo-nos pois
para que se cumpra o princípio
Solte-se o fogo-de-artifício
soem bombos e pandeiretas
que comece a festa
e em festa
deixemos que a vontade dos lábios
seja a asa que comanda o ser
deixemos que no templo dos lábios
a lei seja a do cometa apaixonado
deixemos que o ritual dos lábios
seja a celebração do vinho e do mel
abracemo-nos pois
poemas a respirar uma nova maresia
cúpulas a flutuar na manhã de um sino
mesa posta para a unidade
abracemo-nos pois
e que se cumpra o beijo
rubro
aceso
beijo longo a transbordar para as margens
férteis
do jardim branco
jardim ainda aquém
aquém do mistério
aquém do significado dos signos
aquém do amor aberto em arte
aquém da arte aberta em lua
aquém de lua aberta em nós
abracemo-nos em eternidade de beijo
abracemo-nos em luz de beijo
beijo de além
além semente
além mirante
além ostra
além astro
beijo de prodígio
beijo encantado
líquida rosa
fantástico princípio de todas as quimeras
no jardim branco dos que ainda são
esboço do seu percurso
     É fácil
diremos depois
já mil cores
já arco-íris em cada segundo
     É fácil
diremos depois
com a linguagem da pele
     É fácil
dirão os nossos cabelos verdes
     É fácil ser descoberta no jardim do além
     este jardim que sorri
     aos que em si iniciados
     iniciaram a nova era das flores
dirão os nossos gestos de azul a rolar no azul
     Fácil

Beijemo-nos pois
sem demora
para que todas as nossas pétalas
possam ser a alegria
da liberdade lançada aos ventos



Soares Teixeira – 29-09-2014
(© todos os direitos reservados)