terça-feira, 13 de maio de 2014

"SER RIO" - Soares Teixeira








Ser rio de olhos fechados, sem queixumes reais ou inventados, ir apenas, sem vontade de um direito ou avesso, e sem entrar ou sair de qualquer esforço, e sem fome de qualquer sonho ou sede de qualquer desejo, de qualquer superfície adormecida ou acordada, de qualquer ideia recta ou curva, de qualquer segredo habitado ou desabitado, e sem o amanhecer de qualquer sorte, e sem cisterna a receber poente, e sem vestíbulos urgentes. Instante leve, tão leve como um dia sem horas a esgravatar os espaços, instante criança onde tudo é território dos cabelos que ondulam na claridade, como serpentinas, peixes e algas a flutuar num território além-ser. Nada ter nos bolsos das pálpebras, nem um pássaro, nem uma rede de pescador, nem um pinheiro a caminhar – absolutamente nada para comer com a razão ou sem ela. Sim, ser rio e passar pelas margens de olhos fechados, ser rio e seguir como rio dentro da viagem, ser rio sem testa e sem ombros e sem pés, ser rio sem causa ou gramática. Sim, ser rio ao aspirar o aroma da rosa, ir, apenas ir, e ir ficando nos dedos do seu perfumado encanto.



Soares Teixeira – 11-05-2014
(© todos os direitos reservados)

sexta-feira, 9 de maio de 2014

"O RETRATO" - Soares Teixeira








A mulher observa o retrato
recorda aquele dia
de olhares de dedos febris
a soltarem pássaros com asas de sangue
de chão aberto debaixo de uma seara
prestes a separar-se
e depois aquela súbita haste de vento
que os procurou
à superfície da respiração com que permaneciam imóveis
olharam-se
palavras por nascer de arbustos inquietos
fatiga de folha outonal
entardecer pesado
um cão voltou a cabeça
como se fossem um caminho que o estivesse a chamar
beijaram-se
um beijo mais comprido do que a rua onde estavam
beijaram-se
como se estivessem a dar corda a um relógio
e a acertar-lhe os ponteiros
beijaram-se
com o idioma do amor
com a demostração carnal do prazer
beijaram-se
e foram caminho durante muitos setembros mais
ainda bem
a mulher observa o retrato
encosta-o ao peito
saudade
sempre saudade
até ao definitivo fim da lágrima




Soares Teixeira – 08-05-2014
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 29 de abril de 2014

"HINO AO SOL" - Soares Teixeira









Sol
visto a túnica do alvorecer
adorno a cabeça com chifres de vento
coloco ao peito o meu colar de tempo
enfeito os braços com as minhas pulseiras de além
e estendo os braços para receber cada palavra tua
Sol
olha-me através da minha transparência
observa a pedra suspensa e sobre ela a árvore
suspensa também
olha-me através da minha respiração
observa o caminho e sobre ele o touro
suspenso também
olha-me através da minha razão
observa o mar e sobre ele a ilha
suspensa também
abre-te música
e recebe-me nas tuas flautas
abre-te dança
e recebe-me no segredo vivo dos teus gestos
abre-te aliança
e recebe-me nas portas abertas pelos pássaros
Sol
a minha eternidade é ser este agora em ti
o meu horizonte é ser esta onda em ti
o meu destino é estar aqui por ti
Sol
belos os teus longes sem medida
belas as presenças e ausências que unificas
belo o silêncio com que santificas
Sol




Soares Teixeira – 28-04-2014
(© todos os direitos reservados)

sábado, 26 de abril de 2014

"O QUE EU HOJE VI" (na celebração dos 40 anos do 25 de Abril) - Soares Teixeira





Avenida da Liberdade, Lisboa
Nos 40 anos do 25 de Abril de 1974




O que eu hoje vi
no meu país cravo de luz
foi Abril de sorriso na palavra
o que eu hoje vi
no meu país de gesto em flor
foi a liberdade a brilhar num cântico solar
o que eu hoje vi
no meu país quase milenar
foi um pulso antigo numa página a começar




Soares Teixeira – 25-04-2014
(© todos os direitos reservados)
 








sábado, 19 de abril de 2014

"ENTREGA" - Soares Teixeira









Nudez incendiada e nada mais
ventos arqueados
identidade solar
gargantas de gemido musical
bocas a sorver vinho num chão de carne
dedos como serpentes a brilhar ao sol
coxas como grandes veleiros em flor
violinos nas veias
pássaros nos ossos
nomes sem nome e só entrega
instantes sem instante e só relâmpago
têmporas de fogo e gelo
volúpia na verdade da vontade
liberdade de horizonte sem orla
desejo a voar do desejo
de nos entregarmos aos vulcões



Soares Teixeira – 14-04-2014
(© todos os direitos reservados)