segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

"BASTA UMA FLOR" - Soares Teixeira








O poema aguarda dentro do instante
que gravita em torno do ser
e às vezes basta uma flor
para que os lábios do ser
pousem nos lábios do poema
e o despertem
e isso aconteça por amor

Uma flor apenas pode bastar
uma flor a voar na retina
e beijada com o olhar certo
Uma flor sem nome
a crescer por trás de uma pedra
Uma flor frágil quase indecisa
exilada dos dias
Uma flor com vontade de resistir
Apenas isso
sem veemência de paisagem
sem olhar de pássaro
sem amplexo de vento
apenas isso
apenas uma flor
não achas meu amor?

Apenas essa flor pode bastar
para que relâmpagos se ergam do mar
e peixes dourados nadem em lagos lunares
e salinas cantem os mistérios dos átomos
e florestas irrompam de uma rocha
e tigres corram em gestos por acontecer
leve e breve essa flor pode bastar

Não achas meu amor
que apenas uma flor basta
para alguém ser maior?



Soares Teixeira – 08-11-2013
(© todos os direitos reservados)



quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

"RECOMEÇAREMOS" - Soares Teixeira








Recomeçaremos
das granadas de lágrimas
que nos explodem no peito

Disso podem estar certos!

Recomeçaremos
das espigas
que se ocupam em queimar
com o ácido do medo
Recomeçaremos
das águas que envenenam
com o vómito da mentira
Recomeçaremos
do horizonte que apagam
com o hálito da chantagem

Disso podem estar certos!

Recomeçaremos
do terramoto
da vossa tirania
Recomeçaremos
do pântano
do vosso cinismo
Recomeçaremos
da lepra
da vossa arrogância

Disso podem estar certos!

Recomeçaremos
dos muros que derrubam
e são a nossa vida
Recomeçaremos
das vinhas que arrancam
e são a nossa esperança
Recomeçaremos
dos sinos que quebram
e são a nossa liberdade

Sim!
Recomeçaremos!
Disso podem estar certos!



Soares Teixeira – 05-12-2013
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

"CARTA INACABADA A RIMSKY-KORSAKOV" - Soares Teixeira








Estou-me a ferir com música e sorrio de prazer. É bom sentir a pequena gota de emoção escorrer para o mundo. Invejo-a, invejo a minha pequena lágrima. É bom o belo. Oiço-a…sempre inicial… sempre íntima. Oiço-a… a música onde revivo o que vivi – pássaro, peixe, chaga, chama, chamamento. A música que tanto ouvia no mar que me vazou e encheu. Há lugares em que cada segundo é um poema dito muito devagar. Nalguns desses lugares pergunto-me a que distância estou da próxima estrada, da próxima esquina, da próxima casa, do meu corpo. Duas horas? dois minutos? Dois segundos? Há lugares assim; sendo não-lugares existem tão fortemente que se tornam mais reais que a vulgaridade do lugar ocupado pela âncora do ser – o corpo. Estou num desses lugares – e quero estar! Não sei quanto tempo me separa do ofício de voltar a ser eu; carnal, esculpido pelos meus passos. Dezembro, noite. Aqui, no convés do meu navio, sou um eu sem identidade e o meu pensamento é nudez de azul na distância – só isso. Oiço-a… a música onde balanço, a música onde me vejo e de onde me vejo, a música que me projecta e de onde me projecto. Ah… liberdade de ir com as formigas do tempo e de me infiltrar entre as ervas do mistério. Ah… prazer de sentir os perfumados óleos de enigma, que amorosamente recolho na taça em que me tornei. Abre-te! Rasga-te! Ordeno-te – abre-te fruto ausente! Obedece ao grito agudo e longo! Dentro de mim há luz por todos os lados, mais intensa ainda que a deste Sol a dizer que o dia está a começar. Cada onda está a meio caminho entre o princípio e o fim e todas escrevem uma carta inacabada. Ondulam algas, voam pássaros, céu sem nuvens. O navio vai, e eu vou com ele. Música… alegria… núpcias com o belo… dor de ti, belo. Água; mãe dos cânticos, filha do azul. Água; baptismo dos instantes, que me fazes sentir aparição, que me fazes sentir que nunca fui quem julgava ser. Água, que me perguntas tanta coisa, as tuas perguntas vão até aos meus locais mais sombrios, àqueles onde há demasiado musgo, mesmo àqueles que já são fragmento; tento-te responder, tento, mas como tu sou a escrita de uma carta inacabada. Ondas… navio…agora este violino, depois a orquestra, de novo o violino, olha a harpa, olha as flautas, os violoncelos, os clarinetes, trompas e trompetes, a percussão e todos, todos estes instrumentos - tantos, tantos peixes, todos a brilhar, neste mar, nestas ondas; serenas , solenes e trágicas. A que distância estou de mim? e da próxima ilha? Que dor de belo, que infinito a viver o meu instante, que eternidade a sonhar este meu oceano musical. Água feita de música - intimidade, unidade, ebriedade, majestosa delícia do amplo que me amplia. Rimsky-Korsakov, só tu me entendes não é verdade? Ah, meu irmão, como amo a tua Scheherazade. Para ti esta carta inacabada. Um abraço afectuoso do teu José.





Soares Teixeira – 03-12-2013
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

"AO LER UM POEMA" - Soares Teixeira








Ao ler um poema
de que é feita a minha matéria
enquanto caminho
entre as palavras
que me recebem?
não sei
enquanto habito o poema
não habito o corpo
e se por acaso habitar o corpo
é para comer viagens
como se fossem uvas
Ao ler um poema
sou resposta
a uma voz que me chama
e ergo-me
como árvore
que abandona a planície
e vou
vou abraçar as palavras
sabendo que assim agradeço
a quem as escreveu
o poeta
esse cavaleiro
com armadura de ausência
escudo de silêncio
e espada de grito

no alto da montanha
onde os meus ramos
renascem da asa do poeta
o meu espírito
solenemente recebe
o arado da distância
e é nesse sulco
que um cometa deposita
a incandescente semente
da música dos meus astros




Soares Teixeira – 25-11-2013
(© todos os direitos reservados)

sábado, 23 de novembro de 2013

"ACREDITO" - Soares Teixeira







Acredito no cântico das sereias lunares
acredito na barca de luz que nos visita
acredito na gravidez da Terra
acredito na folhagem do nosso corpo

Acredito no que as aves me dizem
acredito nos olhares meigos das flores
acredito que as ondas têm tornozelos
acredito que os espaços inventam nomes

Acredito em tudo isso
porque sou matéria de mistério
porque sou pulsação de enigma

Acredito em tudo isso
porque sou ferida aberta na razão
porque essa é a minha condição

Por isso as minhas pálpebras
não se cansam de conversar
com os astros que me fazem voar




Soares Teixeira – 22-11-2013
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

"POEMA A QUATRO MÃOS" - Soares Teixeira




                                                         Fotografia de Mendes Domingos




Entre mim e o horizonte
há um poema a quatro mãos
e é azul o gesto que chama pelo gesto
e é azul o olhar que atravessa o instante
e há golfinhos e albatrozes
que acreditam que o mundo é sagrado
e há nuvens e ventos
que dançam a dança da secreta solenidade
e há promontórios no peito
que são veleiros a quatro mãos

Templos de claridade
colunas de espigas
pátios de princípio
paredes de eterno
abóbadas de flautas astrais
convoca-vos o meu peito de astrolábio
escutem-me
sou múltiplo na minha ânfora
e átomo perdido na vossa arquitectura
mas procuro   procuro   procuro

Procuro a viagem sempre futura
de um tempo que me respira
e sou o que estou e o que vou
num existir a quatro mãos
que se procuram   procuram   procuram
mesmo quando me encosto a um muro
mesmo quando me leva uma folha de outono
Por bagagem apenas transporto aquilo que sei
sei que estou aqui e no horizonte
sei que sou um rio a quatro mãos




Soares Teixeira – 21-11-2013
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

"SAIBAM HIENAS" - Soares Teixeira







Saibam hienas que não me importo de viver na selva. Se é isso que querem, muito bem. Mas devo-vos avisar que não sou dócil. Se a minha sombra vos parecer um vago rosto de silêncio saibam que a sua cabeça em chamas se ergue sobre os martelos que a rodeiam. Meter as mãos nas algibeiras da palavra e gastar-me dentro dos meus segredos, como aquário a flutuar no vento? isso não é pão que me alimente. Saibam hienas que não sou mais um dos vossos dias, o que sou é mais uma curva do meu rio. Arco quebrado a respirar folhas mortas? As vossas mentiras não destroem a minha arquitetura; há catedrais no meu pescoço, pontes onde o meu gesto principia, estádios onde o meu sangue galopa. Existam nos olhos dos répteis que vos seguem como esquinas de trapos, existam no rastejar dos insetos que vivem para vos sorrir cegamente – em mim são crânios a rolar no deserto; é assim que vos vejo. Desculpem se tropeço na minha lucidez e caio para o lado oposto das vossas patas, é intencional, gosto de cair nas madrugadas e nas gotas de orvalho. É verdade que às vezes sou amável perante as facas que tentam disfarçar. Que hei-de fazer? É esta a minha forma de vos dar coices. Aos unicórnios exige-se uma certa elegância.





Soares Teixeira – 14-11-2013
(© todos os direitos reservados)