quarta-feira, 16 de outubro de 2013

"O MEU CAMINHO" - Soares Teixeira








Negro, és hóspede do pensamento. Talvez quilha de navio a sulcar a superfície da consciência. Lá em baixo anémonas e corais ondulam no olhar. Alguns peixes também. No reino das estátuas submersas há harpas mudas no cimo de precipícios e ânforas a espalhar azeite destinado a oferendas. Ondulam reflexos de espelhos atravessados por segredos desterrados. Algas enrolam-se à aliança que atravessa o oceano que existe entre as têmporas, que existe entre o horizonte e o mito, que existe entre o nome e a máscara. Solenidade do vazio que regressa à ausência, touro que procura a raça que habitou as primeiras grutas, antiquíssimo porto de manhãs libertas do tempo. Enfeitados de negro os braços penetram no interior do corpo onde tudo é ferozmente íntimo, onde os ossos são mastros de veleiros sem nome, onde o sangue é o eterno meio-dia de um céu sem gaivotas, onde a carne é uma superfície líquida com enseadas no gesto, e onde os músculos são salas de palavras ditas e de palavras não ditas. Diz-me o teu nome para te nomear, negro. Diz-me, negro, o que prometes e de que geografia é feita a tua túnica, a túnica que vestes na tua boda, na boda que celebras com os que aceitam o teu abraço. Se não me disseres como te chamas, se não me disseres uma palavra que seja, então a hora é minha. Subirei os meus degraus de interrogação até que eles se tornem certeza, subirei depois – de uma forma que só eu sei - ao vértice de mim mesmo. Uma última vez chamarei por ti. Uma última vez. Então, se a esse chamamento derradeiro não me responderes, dar-te-ei um nome, dar-te-ei um rosto, e prestar-te-ei culto. Essa é a minha vingança, o meu caminho para os astros.



Soares Teixeira – 14-10-2013
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

"É SEMPRE BOM UM DIA DE SOL INESPERADO" - Soares Teixeira

É sempre bom um dia de sol inesperado; o ar recupera a sua vontade de nos tornar leves e nós recuperamos a vontade de ser seiva dos instantes. É sempre bom sentir a inesperada face de um azul de início e deixar olhares redondos nas coisas simples, que mostram a sua nudez a um sol de Outono que veio de visita. Nesses dias – porque são dias inesperados - os braços mostram a sua condição de pássaros e as pernas a sua vocação musical. É bom caminhar assim, de braço dado com a claridade em que ficamos. Já há folhas a cair das árvores; apanhamo-las com o olhar e fazemo-las obreiras do pensamento. Uma curva, uma pirueta, uma linha recta, uma espiral, agora uma breve brisa e uma ascensão, finalmente a viagem termina e a folha fica tapete à porta do instante. Nesses dias de sol a surpreender as pálpebras apetece não apetecer nada, porque ao sol lhe apeteceu fazer tudo o que nos apeteceria em nós fazer: brilhar inesperadamente.




Soares Teixeira – 07-10-2013

(© todos os direitos reservados)

sábado, 5 de outubro de 2013

"MEU TEJO" - Soares Teixeira








Tejo 
és feliz
corres pelo meu país

Tejo
meu rio
de distâncias a começar
Tejo
meu rio
de alma a sonhar
minha alma
de sonho a navegar
Tejo
meu rio
de barcos a beijar o luar
de barcos de proa solar
de barcos sem pressa nem vagar
de barcos a cantar
Tejo
que abraças
a cintura das manhãs
como se elas fossem
as tuas cortesãs
Tejo
que guardo
sempre
na algibeira do olhar

Tejo
como te invejo
beijas Lisboa que nasceu para o mar


Soares Teixeira – 05-10-2013
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"ACONTECEU" - Soares Teixeira








Habituámo-nos à planície do nosso olhar
e assim caminhámos
paralelos à luz de onde íamos amanhecendo
até que um dia os pássaros beberam
todos os nossos instantes
e as nossas horas caíram tão subitamente
que até o passado nos surgiu como uma taça feita de erro

Agora somos papel de parede descolado
ambos o sabemos
mas nenhum de nós tem coragem de deixar as paredes nuas
e depois
como iríamos viver a nossa separação?



Soares Teixeira – 03-10-2013
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

"NO CONVÉS DA SOLIDÃO" - Soares Teixeira








Magoa
esta distância
com olhos de mar
este crescer de ondas
de altas proas
estas facas de vento
a cortar o rosto

Mas pior é o Homem
Que dizer desse oceano
sempre atormentado
que em si esconde
os ácidos infernos
da inveja e da traição?
Mágoa!



Soares Teixeira – 02-10-2013
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

"PORTUGAL" - Soares Teixeira








Silenciei o gesto com que me assombrei
Diante de mim o mar
como se fosse eu próprio aquela imensidão

Sentei-me numa rocha
e os meu cabelos partiram com o olhar
com eles foram as minhas mãos os meus braços
os meus pés as minhas pernas
os meus ombros e o meu peito
por fim foi a cabeça
ficou a boca      
sílaba a sílaba a percorrer futuro



Soares Teixeira – 30-09-2013
(© todos os direitos reservados)

sábado, 28 de setembro de 2013

"SABES ROSA..." - Soares Teixeira








Sabes rosa…
na tua presença
sinto-me um amanhã que fui
e um passado por acontecer

Estou nas ancas das sereias
nas ogivas de catedrais sem nome
nas crinas de um potro lunar
nos saltos de uma rã sideral
estou também na taça que não ergo
a esta manhã encharcada de luz
e na colmeia de onde não retiro
o mel deste meu instante

És tu rosa
plena e serena
que ao me observares me fazes sentir
este vinho a brotar da pedra imaginária
És tu rosa
meiga e mística
que celebras a flor que em mim despertas
E eu, rosa
fico a roda imóvel em que me transformas



Soares Teixeira – 28-09-2013
(© todos os direitos reservados)