sábado, 6 de julho de 2013

"O VENTO NÃO DÓI NOS GRANDES VELEIROS" - Soares Teixeira

O vento não dói nos grandes veleiros; empurra-os para a descoberta de si mesmos e do seu lugar no horizonte. Nos dias carregados de azul o vento não dói nos grandes veleiros, nos dias carregados de cinzento o vento não dói nos grandes veleiros. Os grandes veleiros só sentem dor quando não há vento porque a calmaria é que dói; com a calmaria os grandes veleiros tropeçam na sua imobilidade, deixam de se procurar, e são estranhos perante o horizonte. Os desafios, as contrariedades e os infortúnios, tornam fortes os mastros, as velas, as proas, os cascos e as quilhas dos grandes veleiros. Praias distantes; ilhas remotas; promontórios de assombro; Fogos de Santelmo; auroras boreais; sereias; mitos; monstros, não se vêm, não se alcançam, não se vivem, com calmarias. Os grandes veleiros sabem que a dor não dói porque o que importa é a viagem. Essa é a grande lição que os grandes veleiros dão aos outros.



Soares Teixeira – 05-07-2013
(© todos os direitos reservados)


quinta-feira, 4 de julho de 2013

"A PELE É UMA PLANÍCIE ONDE O AR CRESCE" - Soares Teixeira


A pele é uma planície onde o ar cresce, quente. Ao longe a fonte de onde apetece beber. Ao meu lado um pássaro, à sombra, tem as asas que me apetecia ter. Mansidão total de horas lentas. As únicas criaturas inquietas são duas vogais que se afastam e atraem; vão para dentro de si mesmas até quase desaparecerem no vazio, depois expandem-se até se tornarem num universo. Porquê? Será essa a sua condição? Será que brincam? Qual será a verdadeira natureza dessas vogais? Sinto-as íntimas dos meus dentes, do meu sangue, do meu olhar, do meu suor, do meu desejo. O Sol aquece. As vogais vão junto do pássaro que está à minha esquerda, roubam-lhe as asas e voam – juntas, rumo à fonte. Lá vou eu.  


Soares Teixeira – 04-07-2013
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 3 de julho de 2013

"ENQUANTO OS DEUSES DORMEM O SONO DOS JUSTOS" - Soares Teixeira


Enquanto os deuses dormem o sono dos justos, ao Sol nunca lhe pesam as pálpebras. Sinto-me amanhecer nestas palavras que vejo correr dentro de mim. Gosto disso. “Amanhecer é sempre uma bênção”, oiço o horizonte dizer. Respiro fundo estas outras palavras. Respiro-as porque acredito nelas e porque, lá no fundo, sinto que elas acreditam em mim. Há um certo tipo de leveza que me aproxima da matéria dos sentimentos. Sim, porque os sentimentos têm matéria. Acham estranho? Então perguntem aos rios, que são sentimento, se têm ou não têm matéria, e perguntem depois à Alegria se é ou não um rio. Se tiverem dificuldade em encontrar a Alegria, contemplem o amanhecer. Estou a falar, primeiramente, para mim mesmo - é óbvio. Para a roda que sou; o eixo, os raios e o resto. Mas falo também - é claro - para outros; outras rodas desta quadriga conduzida pelo Sol.


Soares Teixeira – 03-07-2013
(© todos os direitos reservados)

sábado, 29 de junho de 2013

"A CEREJA MUSICAL" - Soares Teixeira







Seguro entre os dedos
a sensual molhada e rubra cereja
que como um arco de violoncelo
faço deslizar sobre o teu corpo
O gesto termina
quando te passo por entre os lábios
o fruto que te tornou num longo ré bemol
Coloco-me sobre o teu arrepio
e vibramos
primeiro lentos depois violentos
até que voamos pelas constelações
Andrómeda     Orion
Cassiopeia       Centaurus
finalmente Orgasmo
Depois regressamos
ao nosso planeta
e comemos a cereja musical


Soares Teixeira – 23-01-2013
(© todos os direitos reservados)

domingo, 23 de junho de 2013

"EU TE SAÚDO LUA" - Soares Teixeira







Eu te saúdo Lua
cheia de ti e de mim

porque nada mais tenho para te dar
torno alados os oceanos
concedo voz às montanhas
liberto manadas de touros milenares
e neste movimento
de corpo a nadar nos céus
levo-te a vontade de ser
início dos teus caminhos
e fim da minha procura

Eu te saúdo Lua
cheia de nós e de todos

porque nada mais tenho para te dar
entrego-te a minha respiração
enquanto canto os espaços
que se desenrolam do meu peito
entrego-te também o silêncio
que nasce do fim da fadiga
de te tentar alcançar
porque me puxaste para o teu rosto
quando me viste já sem regresso

Eu te saúdo Lua
aceita este meu corpo
em que a matéria se torna beijo



Soares Teixeira – 23-05-2013
(© todos os direitos reservados)

sábado, 22 de junho de 2013

"CALÇO AS SANDÁLIAS" - Soares Teixeira







Calço as sandálias
e os meus pés brilham como romãs
e são a véspera de toda a descoberta
Os caminhos procuram-me
Os instantes estendem-me
os seus pescoços de cisnes brancos
Cravos de sangue percorrem-me as veias
e a minha pele torna-se vegetal
Abro os lábios
Respiro azul
Demoro-me
Intenso    suspenso
como uma palavra sobre o oceano

espero uma brisa para seguir viagem

Demoro-me
dentro de um tempo que cai do tempo
Há uma voz que me procura
Estou no princípio e no fim de mim mesmo
estou na árvore que me pede água
estou na planície que me pede montanha
As minhas sandálias
são tudo o que tenho neste mundo
As minhas sandálias
são o meu mundo
As minhas sandálias sou eu
dentro deste corpo
onde o sonho me abre as pálpebras



Soares Teixeira – 22-06-2013
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 18 de junho de 2013

"LUTA" - Soares Teixeira






Um dia aconteceu-nos liberdade
e o medo caiu de podre
porque soube que nunca mais
seria o nosso alimento

Um dia aconteceu-nos liberdade
e a nossa respiração
deixou de pertencer
aos que nos amordaçavam

Um dia aconteceu-nos liberdade
e descobrimos
que podíamos ser inteiros
dentro de todos os nossos instantes

Um dia aconteceu-nos liberdade
e só agora reparamos
que nos esquecemos de perguntar
até quando?

Ardem as crinas do potro solar
quebram-se as palmeiras de cristal
as manhãs entornam-se dos espelhos
o trigo do peito torna-se frágil

Céus   mares   
espalhem o grito
e procurem outros gritos como este
acontece luta


Soares Teixeira – 15-06-2013
(© todos os direitos reservados)