domingo, 4 de julho de 2021

"CANÇÃO" - SOARES TEIXEIRA

 

Tenho cem coisas na garganta

Todas são desejo

Quantas têm rosto?...

Quantas têm asa?...

Tenho cem coisas no peito

Todas são mar

Quantas tempestades!…

Quantos lemes quebrados!…

Tenho-me, cem vezes me tenho

dentro e fora

da pedra, da árvore, do rio,

da flor, do insecto, da nuvem,

da cidade, do bairro, da rua

Gosto de andar a pé

e sentir a liberdade de saborear

as minhas espessuras e distâncias

transformadas em linguagem

que ninguém entende

Tenho cem reis na garganta

Tenho cem mendigos no peito

Tenho cem marinheiros nos passos

Tenho cem náufragos na pressa

Às vezes páro para escutar

os segredos dos bancos de jardim

e agradeço-lhes esses momentos preciosos

Às vezes fico íntimo

das palavras que me chegam do chão

e agradeço-lhes com um sorriso de raiz

Gosto de andar por aí;

a deixar-me atravessar por ideias que conheço

e por outras que não conheço,

a ser leite de música

e escorrer sobre cem coisas

Gosto de me arrancar das mãos do medo

e de levar alimento àquele àquele

que está no ninho – e sou eu

que está dentro do ovo – e também sou eu

que está no vento – e continuo a ser eu

Gosto de ser diverso

e afasto-me do cristal sonolento

Gosto de andar como um gato

nos telhados dos instantes

e olhar a Lua

com estes cem olhos que tenho na alma

Não me peçam viagens sem voz

Eu canto-me em todos os lugares onde vou


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Soares Teixeira-19-06-2021

(© todos os direitos reservados)


domingo, 9 de maio de 2021

"RECEITA CASEIRA" - SOARES TEIXEIRA

 

Num chá

de folhas de luz

adicionem-se

umas gotas de além


Beba-se

por uma chávena de olhar

com lábios de abstracção

lentamente


A dado instante

os instantes desaparecem

e tudo é plenitude

é a eternidade a fazer efeito



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Soares Teixeira-09-05-2021

(© todos os direitos reservados)




quarta-feira, 24 de março de 2021

RECORDANDO A VIDA DE OFICIAL DE MÁQUINAS MARÍTIMAS

 

        


Recordando quando fui Oficial Engenheiro Maquinista da Marinha Mercante



quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

"CHOCOLATES" - SOARES TEIXEIRA

 

Os chocolates são bons

mas sabem melhor ainda

quando comidos num ócio

a sobrar do tempo

Dentes boémios

mordem a matéria idílica

e a língua, dentro da boca

vai movendo o dorso de nuvem

com lento prazer

Gosto de fazer a vontade aos chocolates

e sorrir para dentro de mim

ainda que um ou outro canto de lábio

denuncie ao mundo o meu deleite

ao comê-los suavemente

como se estivesse a produzir vagar

e essa fosse uma tarefa

a que tivesse de prestar contas

no livro de deve e haver dos meus sentidos

É bom

deixar-me desgovernar por chocolates

e saber disso

e olhar para o outro lado

para o Belo com que o mundo fica vestido

quando estou a comer chocolates

principalmente

se comidos

em longo e manso ócio

Chocolates…

O poder que têm em mandar embora

toda a ciência, toda a filosofia!

Deuses?

Qual quê!… Chocolates! Isso sim!

Heróis?

Que pequenos são, comparados com os chocolates

Poesia?

É boa para embrulhar planetas

Chocolates

Tragam-me chocolates

e com eles viajarei pelo meu reino



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Soares Teixeira-10-02-2021

(© todos os direitos reservados)




terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

LA VOGATA DEL SILENZIO

 

Carnaval de Veneza


É à meia noite da terça feira de Carnaval que em Veneza acontece "La Vogata del Silenzio". De Rialto a São Marcos uma procissão de dezenas de gôndolas desliza em silêncio pelo Grande Canal. Ninguém fala para não perturbar o mistério e o encanto. A iluminação é a das pequenas luzes das embarcações, a que decora as varandas e janelas dos palácios, e o luar. Em São Marcos as gôndolas juntam-se em volta de um animal gigantesco que está sobre uma plataforma flutuante (um touro, no ano em que fui neste desfile mágico). Incendeia-se o Carnaval velho, assim o celebrando, e saúda-se o que há-de vir. Em seguida é o fogo de artifício. E pronto, é o fim. Caímos na realidade. Mas um último olhar de já saudade pergunta: Será mesmo o fim? "La Sereníssima" responde-nos dentro da alma.