domingo, 27 de março de 2022

"O VAGABUNDO DO MAR", MANUEL DA FONSECA



 "O VAGABUNDO DO MAR"

 

Sou barco de vela e remo
sou vagabundo do mar.
Não tenho escala marcada
nem hora para chegar:
é tudo conforme o vento,
tudo conforme a maré…
Muitas vezes acontece largar o rumo tomado
da praia para onde ia…
Foi o vento que virou?
foi o mar que enraiveceu
e não há porto de abrigo?
ou foi a minha vontade
de vagabundo do mar?
Sei lá.
Fosse o que fosse
não tenho rota marcada
ando ao sabor da maré.
É por isso, meus amigos,
que a tempestade da Vida
me apanhou no alto mar.
E agora
queira, ou não queira
cara alegre e braço forte:
estou no meu posto a lutar!
Se for ao fundo acabou-se.
Estas coisas acontecem
aos vagabundos do mar.

 

Manuel da Fonseca

 

 

domingo, 13 de março de 2022

"TANTO" - SOARES TEIXEIRA


Sei que em certos momentos

não gostas

de palavras vestidas de uniforme

eu também não

E o que pode ser o uniforme

numa palavra?

A própria palavra? A forma como é dita?

E o que é dizer?

 

Sei que, como eu, em certos momentos

gostas de ser anterior às palavras;

dizer com o sentir – apenas,

e para isso usar uma linguagem

mais duradoura que qualquer palavra

por isso

este silêncio, as mãos dadas, o olhar

- e saber que tanto assim é dito

 

 

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Soares Teixeira-13-03-2022

(© todos os direitos reservados)

 

 

quarta-feira, 9 de março de 2022

"POEMA DO ALEGRE DESESPERO", ANTÓNIO GEDEÃO

 


 

POEMA DO ALEGRE DESESPERO

Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?
 
 
António Gedeão 


 

sábado, 5 de março de 2022

HINO DA UCRÂNIA - ORQUESTRA GULBENKIAN

 

ONTEM, 04-03-2022, A ORQUESTRA GULBENKIAN, DE PÉ, ANTES DO PROGRAMA ANUNCIADO, INTERPRETOU O HINO DA UCRÂNIA. O PÚBLICO ESCUTOU IGUALMENTE DE PÉ E APLAUDIU PROLONGADAMENTE. COMO FUNDO UMA IMENSA CORTINA PRETA EM SINAL DE LUTO QUE SE ABRIU APÓS A HOMENAGEM, REVELANDO O ESPLENDOROSO JARDIM. ESTIVE LÁ

 

 
 
 

 

terça-feira, 1 de março de 2022

"CONTEMPLAÇÃO" - SOARES TEIXEIRA

 

Olho o mar

com memórias incrustadas no olhar

 

Pergunto ao mar

e sou transportado pela pergunta

 

Olho o mar

e o tempo deixa de o ser;

escorrega-me do ombro

como a alça de um saco

e eu fico mais leve

 

Pergunto ao mar

e os lábios deixam de o ser;

fazem-se pássaros

a chamar por outros pássaros

e eu deixo-me ir

 

 

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Soares Teixeira-01-03-2022

(© todos os direitos reservados)

 

 

domingo, 27 de fevereiro de 2022

"VOU!" - SOARES TEIXEIRA


Ficar?

Ficar é ser viela empoeirada

onde cada vez mais pó se aglomera

Não, eu não quero ficar em mim

para, no máximo, emigrar

para memórias e reflexos do que fui

Não quero ser floresta petrificada

O que eu quero

são os gritos das aves aquáticas,

são os olhares dos cavalos selvagens,

são as cores das cidades cosmopolitas,

são os cheiros do fim do mundo,

é sentir o ar carregado de mistério

Entardecer a vida

como um navio amarrado ao cais?

Olhar o céu e o mar

como mendigo de azul?

Tornar-me habitante

de ecos dos meus passos no silêncio?

Não!

Quero a minha alma sempre acesa,

pronta para o próximo romance

entre mim o horizonte

Quero a minha inquietação

em incessante procura

de astros extraviados

Quero ter gestos ousados

para tornar minha realidade

as miragens desfocadas

Neste, que sou,

não há apenas o que fui,

ou  vou sendo

Neste que sou

há uma multidão que avança

e à sua passagem

levanta do chão 

sonhos caídos

Neste, que sou,

não fico!

Neste, que sou,

ordeno-me a ir!

E vou!

 

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Soares Teixeira-27-02-2022

(© todos os direitos reservados)

 

 

sábado, 26 de fevereiro de 2022

"O QUE A POESIA NOS TRÁS" - SOARES TEIXEIRA

 

A poesia traz-nos coisas

que podem ser incompreensíveis

para alguns – até perigosas

e essas coisas podem ser

avenidas calcetadas a luar

ou pássaros psíquicos

a levantar voo de ponteiros  

cansados dos seus relógios

 

Isso, que a poesia nos trás,

e que pode por muitos

ser considerado delito,

é um convite para que o olhar

abra portas de armários

e deslize para outra dimensão

Isso, que a poesia nos trás,

é a liberdade

 

 

 

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Soares Teixeira-26-02-2022

(© todos os direitos reservados)