segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

"JOGO" - SOARES TEIXEIRA


Erguer os braços
abrir os dedos e movimentá-los
lentamente
Aproximação
dedos a procurar outros dedos
dedos a encontrar outros dedos
Aprendizagem
dedos lentamente noutros dedos
dedos a tactear outros dedos
As pontas dos cinco dedos de cada mão
a conhecerem outras
pontas de outros cinco dedos de outras mãos
e a conversarem
agora isto, agora aquilo,
agora segredos, agora risos
Dedos empurram outros dedos
tentacularmente
aleatóriamente
mais ou menos força
mais ou menos resistência
Dedos como criaturas distintas
independentes
maior ou menor intuição
maior ou menor entrega
Vinte dedos
cinco de cada mão
dez meus
dez teus
a dizerem baixinho
em surdina
o que só eles sabem
que deve ser dito
como deve ser dito
porque deve ser dito
Confissão, compreensão, carícia
Os nossos vinte dedos
têm olhos, nariz e boca
Os nossos autónomos vinte dedos
têm braços e joelhos
Os nossos vinte dedos
tornam-se
cúmplices donos do tempo
Os nossos autónomos vinte dedos
fazem
descobertas improváveis
Os nossos vinte dedos
brincam, jogam, divertem-se,
e beijam-se
com vinte lábios a vibrar



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Soares Teixeira-13-12-2021
(© todos os direitos reservados)


domingo, 21 de novembro de 2021

"LONGE" - SOARES TEIXEIRA


Pego num lápis e num papel
e começo a desenhar-me
sem pressa
primeiro uma raiz
depois um alongar de raízes
que se estendem até ao olhar
depois uma distância
onde o azul é a única cor
depois um barco
e nele vai preso o Sol - como um balão
Interrompo o desenho
Interrompo-me…,
Fico assim como…,
algo indefinido…,
nem lápis, nem papel,
nem começo, nem desenho,
nem eu...
(se me interrompo deixo de existir)
Momento branco
de olhar vazio
onde o nada é a única superfície
e o único interior
Quanto tempo passa?
O tempo branco é silêncio;
não responde
Ao longe
(não sei que longe)
um chamamento
Reparo que me interrompi em barco
e volto a desenhar-me
tronco, ramos, folhas,
tombadilho, proa, quilha,
alma
O lápis corre cada vez mais depressa no papel
o desenho aumenta, aumenta sem parar
os dedos seguram o lápis com força
e o lápis desenha furiosamente
e o papel quase se rasga
e o barco vai…, vai…,
num mar de lágrimas que ondulam na alma
- vento, tempestade, respiração ofegante
O Sol solta-se do barco,
transforma-se num piano
e fico a escutar o som da música
… que me chama
… de longe
(não sei que longe)
… mas tão perto...


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Soares Teixeira-21-11-2021
(© todos os direitos reservado

domingo, 14 de novembro de 2021

""FUSÃO" - SOARES TEIXEIRA

 

Na praia observo
e ao observar também sou
o ondulante gigante
de cabelos brancos
chamado mar

Na praia escuto
e ao escutar também sou
o incessante bramido
selvagem e sagrado
do humano mar

Na praia alongo-me
e ao alongar-me também sou
distância a despontar
da linha do horizonte
- em nós a unidade, ó mar


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Soares Teixeira-14-11-2021 (Costa da Caparica)
(© todos os direitos reservados)


terça-feira, 2 de novembro de 2021

"A NELSON FREIRE" - SOARES TEIXEIRA

 

Deixaste-nos

e a tua ausência

são lírios curvados

no vazio onde,

olhar sem corpo,

nos sentamos a um canto,

no banco baixo

da tristeza

Quem contempla agora

o teu sorriso brando?

- Aqueles que nos teus dedos

eram presença em luz?

Adeus, Nelson Freire

De ti fica

o teres sido

cascata imensa

na floresta da música

Da tua Obra renascemos

e assim será pelos tempos



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Soares Teixeira-02-11-2021

(© todos os direitos reservados)

domingo, 4 de julho de 2021

"CANÇÃO" - SOARES TEIXEIRA

 

Tenho cem coisas na garganta

Todas são desejo

Quantas têm rosto?...

Quantas têm asa?...

Tenho cem coisas no peito

Todas são mar

Quantas tempestades!…

Quantos lemes quebrados!…

Tenho-me, cem vezes me tenho

dentro e fora

da pedra, da árvore, do rio,

da flor, do insecto, da nuvem,

da cidade, do bairro, da rua

Gosto de andar a pé

e sentir a liberdade de saborear

as minhas espessuras e distâncias

transformadas em linguagem

que ninguém entende

Tenho cem reis na garganta

Tenho cem mendigos no peito

Tenho cem marinheiros nos passos

Tenho cem náufragos na pressa

Às vezes páro para escutar

os segredos dos bancos de jardim

e agradeço-lhes esses momentos preciosos

Às vezes fico íntimo

das palavras que me chegam do chão

e agradeço-lhes com um sorriso de raiz

Gosto de andar por aí;

a deixar-me atravessar por ideias que conheço

e por outras que não conheço,

a ser leite de música

e escorrer sobre cem coisas

Gosto de me arrancar das mãos do medo

e de levar alimento àquele àquele

que está no ninho – e sou eu

que está dentro do ovo – e também sou eu

que está no vento – e continuo a ser eu

Gosto de ser diverso

e afasto-me do cristal sonolento

Gosto de andar como um gato

nos telhados dos instantes

e olhar a Lua

com estes cem olhos que tenho na alma

Não me peçam viagens sem voz

Eu canto-me em todos os lugares onde vou


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Soares Teixeira-19-06-2021

(© todos os direitos reservados)


domingo, 9 de maio de 2021

"RECEITA CASEIRA" - SOARES TEIXEIRA

 

Num chá

de folhas de luz

adicionem-se

umas gotas de além


Beba-se

por uma chávena de olhar

com lábios de abstracção

lentamente


A dado instante

os instantes desaparecem

e tudo é plenitude

é a eternidade a fazer efeito



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Soares Teixeira-09-05-2021

(© todos os direitos reservados)