Tenho cem coisas na garganta
Todas são desejo
Quantas têm rosto?...
Quantas têm asa?...
Tenho cem coisas no peito
Todas são mar
Quantas tempestades!…
Quantos lemes quebrados!…
Tenho-me, cem vezes me tenho
dentro e fora
da pedra, da árvore, do rio,
da flor, do insecto, da nuvem,
da cidade, do bairro, da rua
Gosto de andar a pé
e sentir a liberdade de saborear
as minhas espessuras e distâncias
transformadas em linguagem
que ninguém entende
Tenho cem reis na garganta
Tenho cem mendigos no peito
Tenho cem marinheiros nos passos
Tenho cem náufragos na pressa
Às vezes páro para escutar
os segredos dos bancos de jardim
e agradeço-lhes esses momentos preciosos
Às vezes fico íntimo
das palavras que me chegam do chão
e agradeço-lhes com um sorriso de raiz
Gosto de andar por aí;
a deixar-me atravessar por ideias que conheço
e por outras que não conheço,
a ser leite de música
e escorrer sobre cem coisas
Gosto de me arrancar das mãos do medo
e de levar alimento àquele àquele
que está no ninho – e sou eu
que está dentro do ovo – e também sou eu
que está no vento – e continuo a ser eu
Gosto de ser diverso
e afasto-me do cristal sonolento
Gosto de andar como um gato
nos telhados dos instantes
e olhar a Lua
com estes cem olhos que tenho na alma
Não me peçam viagens sem voz
Eu canto-me em todos os lugares onde vou
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