segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

"OS OLHOS DO POETA", MANUEL DA FONSECA





OS OLHOS DO POETA

O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da Terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gelos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando como contos de fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas prò mar amaldiçoando a tempestade:
‑ todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas,
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.

                
Manuel Da Fonseca “Rosa dos Ventos” (1940)
in 
Obra Poética, Lisboa, Editorial Caminho, 1984, 7ª ed. revista pelo autor.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

"HÁ ÁRVORES NASCIDAS DO LUAR" - SOOARES TEIXEIRA



Há árvores nascidas do luar
há regatos em êxtase a cantar
há delírios com cheiro a mar
e existe o teu olhar
por onde se ascende ao infinito
e existe o teu gesto
que se confunde com o ardor do sol
e existe o teu corpo
que é o eco de um grito
e existem estas veias
contentes, intensas e embaladas
e existe este corpo
rápido como um remo
que encurta as águas do instante
para que haja um só impulso
a florir do prazer
de sermos um só astro


Soares Teixeira
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

SONETO XVIII, WILLIAM SHAKESPEARE - SOARES TEIXEIRA




SONETO XVIII - WILLIAM SHAKESPEARE

Shall I compare thee to a summer's day?
Thou art more lovely and more temperate:
Rough winds do shake the darling buds of May,
And summer's lease hath all too short a date:
Sometime too hot the eye of heaven shines,
And often is his gold complexion dimm'd;
And every fair from fair sometime declines,
By chance, or nature's changing course, untrimm'd;
But thy eternal summer shall not fade
Nor lose possession of that fair thou ow'st;
Nor shall Death brag thou wander'st in his shade,
When in eternal lines to time thou grow'st;
        So long as men can breathe or eyes can see,
        So long lives this, and this gives life to thee.



Versão de Vasco Graça Moura

Que és um dia de verão não sei se diga.
És mais suave e tens mais formosura:
vento agreste botões frágeis fustiga
em Maio e um verão a prazo pouco dura.
O olho do céu vezes sem conta abrasa,
outras a tez dourada lhe escurece,
todo o belo do belo se desfasa,
por caso ou pelo curso a que obedece
da Natureza; mas teu eterno verão
nem murcha, nem te tira teus pertences,
nem a morte te torna assombração
quando o tempo em eternas linhas vences:
enquanto alguém respire ou possa ver
e viva isto e a ti faça viver.

sábado, 20 de janeiro de 2018

"AEROPORTOS" - Soares Teixeira

Os poemas são aeroportos
onde é bom poisar
para ir conhecer outras terras,
outras gentes, outros cheiros,
novas paisagens,…
e tudo isso
podemos levar de volta connosco
como recordação
ruas… casas… olhares…
ribeiros… flores…
cabe tudo na mochila
até mesmo aquele par de asas
oferecido por um saltimbanco


Soares Teixeira – 20-01-2018
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

"AQUI E AGORA" - Soares Teixeira



Ficar no sono do sonho,
dentro do círculo do se?
se eu fosse…
se eu tivesse…
se eu pudesse…
Ficar a iluminar a negação do Ser?
Preservar o grito silenciado?
Suturar indefinidamente a ferida da asa cortada?!
Virar as costas aos espelhos,
para não ver a linha recta
que teima em sair do peito da imagem,
e não sentir na carne e no espírito
a dor dum espinho de luz,
e assim transformar  a renúncia ao sonho
em tempo habitável?!
Ser ardósia onde a palavra esquecimento
é escrita e rescrita e rescrita e rescrita,…
ser vela a chorar por dentro
o pavio que se vai gastando,…
ser sombra amadurecida
diante de fronteira opaca,…
é isso?
apenas isso?
Deixar que tudo se resuma
a areia a escorrer por entre os dedos?
é isso?!
e sem nunca as próprias mãos
abanarem os próprios ombros?
nem mesmo as mãos que saem dos espelhos?
Ser simulacro?!...
Viver em simulacro?!...
Oh mesas repletas de fingidas baixelas
Oh reposteiros de falsas verdades
escutai o uivo da sede
e provai o mar liberto
e provai o murro e o grito
e que os vossos destroços espalhem
aos quatro ventos
e até bem longe
que o amanhã
é uma árvore que se planta
aqui e agora!


Soares Teixeira – 18-01-2018
(© todos os direitos reservados)

sábado, 13 de janeiro de 2018

"TER E SER" - Soares Teixeira



Ter e ser
Sol
em toda a extensão do gesto
mesmo quando as nuvens
dominam o tecto dos dias
Ter e ser
horizonte
em todas os astros do olhar
mesmo quando os labirintos
celebram os seus muros
Ter e ser
vontade
em todas as raízes do sonho
mesmo quando a água do instante
não chega para a sede da árvore
Ter e ser
além mar
celeiro de infinito
luz, asa e grito


Soares Teixeira – 13-01-2018
(© todos os direitos reservados)