domingo, 23 de outubro de 2016

"GRATIDÃO" - Soares Teixeira


Olho
e o meu olhar é um beijo na fronte dos astros
e isso eles nunca me recusam
conhecem-me
conhecem tudo o que em mim se quebra
tudo o que em mim se constrói
sabem quando encosto a cabeça às árvores
quando os ombros se me estremecem
a forma que dou aos acontecimentos
ou quando tento calafetar os navios da minha culpa
por trás da voz da noite
oiço o sussurro daqueles que não me abandonam
e me oferecem os seus rostos
e me aceitam como lira e como cidade
tenho a sensação de que não sou um forasteiro entre as galáxias
uma sensação antiga guardada dentro de muralhas inexpugnáveis

Quantas vezes, nas passagens íngremes de alguns caminhos
me sinto o filho predicleto das pequenas flores
que em cuidados maternais me conduzem por entre os abismos
superstição?
ilusão?
não renego a olaria dos mistérios nem os segredos dos búzios
só isso
e isso me basta para este meu olhar de rapazinho
vestido de gratidão



Soares Teixeira – 23-10-2016
(© todos os direitos reservados)

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

"A PEDRA" - Soares Teixeira




Às vezes
sem nos apercebermos
existe no olhar de quem nos sorri
uma formiga
muito pequena
quase imperceptível
quase transparente
mas com força bastante
para puxar uma grande pedra negra
 - a inveja -
devagar
persistente
a formiga avança
e a pedra também
depois pode acontecer
descobrirmos
tarde de mais
o peso dos dias
com os vidros embaciados
sujos
e que nós
as criaturas dos nossos passos
somos irreconhecíveis a nós mesmos
e sentir um navio encalhado na garganta
e ver ao fundo do espinho
uma mão ressequida negar o gesto antigo
e sentir uma só palavra
a conduzir o carro da indiferença
- traição -



Soares Teixeira – 19-10-2016
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 18 de outubro de 2016

"AGRADECIMENTO" - Soares Teixeira


Ao céu
que faz com que entre
por mim adentro
eu agradeço
as descobertas que espalho
por todas as minhas veias

Aos pássaros
que me levantam os braços
em gesto solar
eu agradeço
o fazerem-me horizonte
nas suas asas

Ao mar
que nunca se esquece
do que eu sinto
eu agradeço
os instantes
que me são jangada



Soares Teixeira – 18-10-2016
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

"SEM EXPLICAÇÃO" - Soares Teixeira



Há um limite para além do qual
sou asa
e esse limite
acontece-me com o Belo
pode ser uma pintura, uma fotografia
um filme, uma canção
uma flor, um animal
ou um poema
às vezes penso
que a alma não me perdoaria
se eu me mantivesse alheio ao Belo
e isto estou a pensá-lo
aqui e agora
debaixo da ternura de um ramo de oliveira
que não está o pé de mim
mas está
porque há proximidades
que não têm explicação



Soares Teixeira – 17-10-2016
(© todos os direitos reservados)

domingo, 16 de outubro de 2016

"A CARTOLA" - Soares Teixeira






Pergunto:
para quê o sentarmo-nos
numa mágoa de espaldar alto
a escutar vozes
que trespassam a têmpora e o tempo?
para quê riscarmos os nossos nomes
do Sol que nos abre os dias
e da Lua que nos beija cada sorriso e cada lágrima?
para quê afundar o crânio no peito
e afundar o peito no poço do esmorecimento?
para quê?
é verdade que nem tudo são rosas
é verdade que as rosas murcham
é verdade que as rosas morrem
no tapete vermelho da vida há sangue, sim
há espinhos com fome de carne e alma
mas também há
berros de jovens ovelhas e de jovens pinheiros
frenesins musicais de pássaros e insectos
e a antiquíssima juventude do mar e das rochas
e a mágica cartola do vento
de onde podem sair
saltitantes coelhos coloridos
pombas perdidas de amor pelo azul
lenços em flor e a crescer em algo maior
e vontade e luta
numa nudez pura
que pode surgir
da mais imprevisível gota de orvalho
ou da mais íntima e inesperada silhueta solar



Soares Teixeira – 16-10-2016
(© todos os direitos reservados)