quarta-feira, 19 de outubro de 2016

"A PEDRA" - Soares Teixeira




Às vezes
sem nos apercebermos
existe no olhar de quem nos sorri
uma formiga
muito pequena
quase imperceptível
quase transparente
mas com força bastante
para puxar uma grande pedra negra
 - a inveja -
devagar
persistente
a formiga avança
e a pedra também
depois pode acontecer
descobrirmos
tarde de mais
o peso dos dias
com os vidros embaciados
sujos
e que nós
as criaturas dos nossos passos
somos irreconhecíveis a nós mesmos
e sentir um navio encalhado na garganta
e ver ao fundo do espinho
uma mão ressequida negar o gesto antigo
e sentir uma só palavra
a conduzir o carro da indiferença
- traição -



Soares Teixeira – 19-10-2016
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 18 de outubro de 2016

"AGRADECIMENTO" - Soares Teixeira


Ao céu
que faz com que entre
por mim adentro
eu agradeço
as descobertas que espalho
por todas as minhas veias

Aos pássaros
que me levantam os braços
em gesto solar
eu agradeço
o fazerem-me horizonte
nas suas asas

Ao mar
que nunca se esquece
do que eu sinto
eu agradeço
os instantes
que me são jangada



Soares Teixeira – 18-10-2016
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

"SEM EXPLICAÇÃO" - Soares Teixeira



Há um limite para além do qual
sou asa
e esse limite
acontece-me com o Belo
pode ser uma pintura, uma fotografia
um filme, uma canção
uma flor, um animal
ou um poema
às vezes penso
que a alma não me perdoaria
se eu me mantivesse alheio ao Belo
e isto estou a pensá-lo
aqui e agora
debaixo da ternura de um ramo de oliveira
que não está o pé de mim
mas está
porque há proximidades
que não têm explicação



Soares Teixeira – 17-10-2016
(© todos os direitos reservados)

domingo, 16 de outubro de 2016

"A CARTOLA" - Soares Teixeira






Pergunto:
para quê o sentarmo-nos
numa mágoa de espaldar alto
a escutar vozes
que trespassam a têmpora e o tempo?
para quê riscarmos os nossos nomes
do Sol que nos abre os dias
e da Lua que nos beija cada sorriso e cada lágrima?
para quê afundar o crânio no peito
e afundar o peito no poço do esmorecimento?
para quê?
é verdade que nem tudo são rosas
é verdade que as rosas murcham
é verdade que as rosas morrem
no tapete vermelho da vida há sangue, sim
há espinhos com fome de carne e alma
mas também há
berros de jovens ovelhas e de jovens pinheiros
frenesins musicais de pássaros e insectos
e a antiquíssima juventude do mar e das rochas
e a mágica cartola do vento
de onde podem sair
saltitantes coelhos coloridos
pombas perdidas de amor pelo azul
lenços em flor e a crescer em algo maior
e vontade e luta
numa nudez pura
que pode surgir
da mais imprevisível gota de orvalho
ou da mais íntima e inesperada silhueta solar



Soares Teixeira – 16-10-2016
(© todos os direitos reservados)

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

"PARAÍSO" - Soares Teixeira



Enquanto o céu descansa no seu sonho azul
eu liberto a incandescente escrita do olhar
e escrevo na minha carne
- aquela onde tenho as veias e aquela onde tenho os astros –
Unidade

Enquanto no céu se ergue a casa do silêncio
eu ascendo e comigo levo a carícia do cântico das flores 
e abro o meu livro
- o do sangue e o do gesto –
e abrasa-me a sede de voar

Enquanto o céu se estende em praia íntima do infinito
eu sou mar a renascer das minhas ondas
e beijo o segredo dos peixes e das árvores
e galgo rochedos e trepo montanhas
e grito em êxtase
Paraíso!



Soares Teixeira – 13-10-2016
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 11 de outubro de 2016

"ATRACÇÃO" - Soares Teixeira



Olhamo-nos

Contemplo o céu
e imagino
umas mãos brancas
depois opalinas
depois translúcidas
depois transparentes
depois aladas
ainda
em sossegado não ser

Aguardo

Quanto tempo? Não sei
talvez uma eternidade
talvez uma passagem de pássaro
talvez um breve rolar de esfera

Depois
sinto
nas minhas costas
as mágicas mãos
do teu olhar
azul
sinto-as
abertas
muito abertas
duas asas a bater
e nós a erguermo-nos
na atmosfera
do abraço

“Vejam astros!”
- exclamamos em silêncio -
enquanto nos voamos em beijos




Soares Teixeira – 11-10-2016
(© todos os direitos reservados)