quinta-feira, 12 de maio de 2016

"SER" - Soares Teixeira



ser dedos para conhecer a flor
ser olhar para acolher os astros
ser além para saber ser aquém



Soares Teixeira – 12-05-2016
(© todos os direitos reservados)

"COMUNHÃO" - Soares Teixeira



Enquanto a minha pele
for o azul onde as aves
constroem horas de descoberta
eu serei
o sem tempo
o sem espaço
aquele que estende o braço
à maçaneta da porta
sempre para lá de qualquer pátio
enquanto os meus ossos
forem viva matéria solar
eu caminharei
com a espiga
com a abelha
com a rocha
para, inteiro
e entre irmãos
ser o início sem fim
de um hino de gratidão
à Terra minha Mãe
enquanto a minha carne
for palavra
será isto o que direi
aos astros que me escutam



Soares Teixeira – 12-05-2016
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 9 de maio de 2016

"SER CAULE DE ASTRO" - Soares Teixeira



Há coisas mínimas
que valem
porque são máximas
há coisas insignificantes
que valem
porque nos contemplam
tão profundamente
que ignorá-las
seria o mesmo
que ignorar o peito
Sentir na gota de orvalho
o eixo do instante
descobrir na formiga
a fórmula do saber olhar
receber de uma flor
o jardim do horizonte
isso sim
é ser alma com raíz no corpo
é, mesmo ficando, ir
e assim, nunca permanecer
antes crescer
ser caule de astro
acariciar o rosto do sol
e beijar a face
da vida que nos aconteceu



Soares Teixeira – 09-05-2016
(© todos os direitos reservados)

domingo, 8 de maio de 2016

"A CARLOS SEIXAS" - Soares Teixeira



Fechar os olhos
ser recriado
a partir da tua música
e depois ir
sem mapas
porque toda a viagem
é um ascender na claridade
finalmente
ter como destino
o ficar a gravitar
em torno do cravo
onde tocas
rodeado de anjos
de olhos muito abertos
fascinados
com a luz
sempre inicial
que te sai dos dedos



Soares Teixeira – 08-05-2016
(© todos os direitos reservados)




sexta-feira, 6 de maio de 2016

"NO PIQUENIQUE DE CESÁRIO VERDE" - Soares Teixeira



Meu querido Cesário Verde
vou confessar-te uma coisa,
e que isto fique aqui só entre nós dois,
tenho um secreto prazer em entrar furtivamente
no teu delicioso poema “De tarde”
faço-o muitas vezes
vou mansinho, pé ante pé,
caminhando entre o piquenique de burguesas
e escolho um lugar propício
de onde possa ver bem toda a cena
depois observo com atenção
aquelas senhoras, todas muito senhoras, muito arrumadinhas,
com gestos muito correctozinhos a falarem umas com as outras
com muitos risinhos e ahs de espanto
gosto também de observar os cavalheiros,
todos muito certinhos, muito convenientes
(tudo tão diferente de hoje em dia… e tão igual…)
há lá umas três ou quatro criancinhas
mas nunca lhes ligo importância
espera, Cesário, não faças essa cara de espanto,
eu sei que te pode parecer estranho mas deixa-me prosseguir
pois, meu querido e intrigado amigo, digo-te que
ao observar os tiques e truques afectados
de algumas dessas personagens
todo eu sou prazer e riso aberto
chego a esfregar as mãos de contentamento
e a bater com os pés no chão, de tanto gozo
e já tenho feito momices que me envergonhariam
aqui nesta vida a que chamamos real
sim! sim! verdade!
não te rias, Cesário, acontece-me mesmo, juro!
ainda no outro dia, nem imaginas…
torci-me todo à gargalhada ao ver o que aconteceu
àquela senhora de vestido de cetim azul claro,
qual? Ora! aquela com cara de bidé! Sentada sobre uma mantinha
de xadrez onde o terreno faz uma ligeira inclinação
sim, eu sei… sei que não está no poema…
não está mas está, porque eu a vejo,
assim como vejo muitas outras coisas que não estão lá escritas
eu depois explico melhor
mas, continuando, ri a bom rir ao ver a dita senhora
gritar de susto, cair para trás e rebolar, quando um pequeno pássaro
lhe passou quase rente ao nariz
é… foi mesmo cómico
mas… sabes… e perdoa-me isto que te vou confessar
o que eu adoro ver
o que me enche de ternura, uma quase comovente ternura,
são vocês dois
tão alegres, tão puros, tão simples, tão naturais,
tão belos,
a comerem despreocupadamente aqueles soberbas talhadas de melão,
aqueles suculentos damascos, aquelas magníficas fatias de pão-de-ló
molhado em malvasia, que me fazem crescer água na boca
tantas vezes eu o sinto e digo:
meus queridos amigos, como queria poder abraçar-vos, e dizer-vos
o quanto me fazem falta,
o quanto tornam os meus dias melhores
o quanto são o meu amparo quando chego a casa cansado
o quanto são o meu alento quando tudo à minha volta é ruído e pressa
o quanto são a minha alma quando sinto roubarem-me a alma
o quanto são o meu corpo quando sinto o meu corpo gasto
adoro-vos, meus amigos, e agradeço-vos o serem como são
se soubesses, meu querido Cesário, como estou farto de imposturas tolas
se soubesses…
se tu soubesses…
mas…
meu querido Cesário, digo-te que…, e mais uma vez te peço perdão,
não me leves a mal,
digo-te que…
o supremo encanto da merenda
o supremo encanto de entrar nesse teu maravilhoso piquenique
é olhar os teus olhos e olhar para onde tu olhas
esse é pois o supremo encanto da merenda
oh que rolas! aquelas duas belas rolas…
a voar… a voar… no céu do teu rosto, e do meu
a voar… belas… ao som do cântico das papoulas
Adeus meu querido amigo, até ao próximo piquenique
um dia, quem sabe, talvez nos juntemos todos
num grande, muito grande, granzoal azul de grão-de-bico




Soares Teixeira – 06-05-2016
(© todos os direitos reservados)



Nota:
Singela homenagem ao poema "De tarde" e ao seu autor, Cesário Verde



    DE TARDE




Naquele piquenique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

 Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!


Cesário Verde 
(1855/1886)


 
 Cesário Verde em desenho de Columbano Bordalo Pinheiro