Meu querido Cesário Verde
vou confessar-te uma coisa,
e que isto fique aqui só entre nós dois,
tenho um secreto prazer em entrar furtivamente
no teu delicioso poema “De tarde”
faço-o muitas vezes
vou mansinho, pé ante pé,
caminhando entre o piquenique de burguesas
e escolho um lugar propício
de onde possa ver bem toda a cena
depois observo com atenção
aquelas senhoras, todas muito senhoras, muito arrumadinhas,
com gestos muito correctozinhos a falarem umas com as outras
com muitos risinhos e ahs de espanto
gosto também de observar os cavalheiros,
todos muito certinhos, muito convenientes
(tudo tão diferente de hoje em dia… e tão igual…)
há lá umas três ou quatro criancinhas
mas nunca lhes ligo importância
espera, Cesário, não faças essa cara de espanto,
eu sei que te pode parecer estranho mas deixa-me prosseguir
pois, meu querido e intrigado amigo, digo-te que
ao observar os tiques e truques afectados
de algumas dessas personagens
todo eu sou prazer e riso aberto
chego a esfregar as mãos de contentamento
e a bater com os pés no chão, de tanto gozo
e já tenho feito momices que me envergonhariam
aqui nesta vida a que chamamos real
sim! sim! verdade!
não te rias, Cesário, acontece-me mesmo, juro!
ainda no outro dia, nem imaginas…
torci-me todo à gargalhada ao ver o que aconteceu
àquela senhora de vestido de cetim azul claro,
qual? Ora! aquela com cara de bidé! Sentada sobre uma
mantinha
de xadrez onde o terreno faz uma ligeira inclinação
sim, eu sei… sei que não está no poema…
não está mas está, porque eu a vejo,
assim como vejo muitas outras coisas que não estão lá
escritas
eu depois explico melhor
mas, continuando, ri a bom rir ao ver a dita senhora
gritar de susto, cair para trás e rebolar, quando um pequeno
pássaro
lhe passou quase rente ao nariz
é… foi mesmo cómico
mas… sabes… e perdoa-me isto que te vou confessar
o que eu adoro ver
o que me enche de ternura, uma quase comovente ternura,
são vocês dois
tão alegres, tão puros, tão simples, tão naturais,
tão belos,
a comerem despreocupadamente aqueles soberbas talhadas de
melão,
aqueles suculentos damascos, aquelas magníficas fatias de
pão-de-ló
molhado em malvasia, que me fazem crescer água na boca
tantas vezes eu o sinto e digo:
meus queridos amigos, como queria poder abraçar-vos, e dizer-vos
o quanto me fazem falta,
o quanto tornam os meus dias melhores
o quanto são o meu amparo quando chego a casa cansado
o quanto são o meu alento quando tudo à minha volta é ruído
e pressa
o quanto são a minha alma quando sinto roubarem-me a alma
o quanto são o meu corpo quando sinto o meu corpo gasto
adoro-vos, meus amigos, e agradeço-vos o serem como são
se soubesses, meu querido Cesário, como estou farto de
imposturas tolas
se soubesses…
se tu soubesses…
mas…
meu querido Cesário, digo-te que…, e mais uma vez te peço
perdão,
não me leves a mal,
digo-te que…
o supremo encanto da merenda
o supremo encanto de entrar nesse teu maravilhoso piquenique
é olhar os teus olhos e olhar para onde tu olhas
esse é pois o supremo encanto da merenda
oh que rolas! aquelas duas belas rolas…
a voar… a voar… no céu do teu rosto, e do meu
a voar… belas… ao som do cântico das papoulas
Adeus meu querido amigo, até ao próximo piquenique
um dia, quem sabe, talvez nos juntemos todos
num grande, muito grande, granzoal azul de grão-de-bico
Soares Teixeira – 06-05-2016
(© todos os direitos reservados)
Nota:
Singela homenagem ao poema "De tarde" e ao seu autor, Cesário Verde
DE TARDE
Naquele piquenique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Cesário Verde
(1855/1886)
Cesário Verde em desenho de Columbano Bordalo Pinheiro