a
poesia poderá estar nos misteriosos acordes de um piano transparente, nos
súbitos frutos libertos de todos os princípios e de todos os fins, nos gritos
dilacerados das tempestades, na chuva que cai sobre telhados de cidades onde a
lentidão das noites torna fantásticos os seus recantos mais infectos, na
insónia de rios que a todos os instantes passam pelos gestos com que os barcos
os afagam, no estrépito de cor de flores silvestres, no inexplorável ócio com
que a névoa se afasta de caminhos guardados no extremo da fragilidade, no ondulante
e aveludado silêncio com que as algas dizem que sim e que não a peixes
submersos em pensamentos surpreendentes e jamais acessíveis a pássaros de asas
guardadas em casacos cinzentos. Sim talvez a poesia ande por aí… talvez esteja
por aí, a poesia… na vertigem, na viagem, no murmúrio, nas lâmpadas e nas
rosas, nas coisas todas, na matéria e na antimatéria… talvez ande por aí – anda
certamente… anda. Que ande! A poesia que neste momento eu quero é aquela que
está no olhar de um cão quando sabe que o seu amigo de duas patas morreu. Essa
é a poesia que eu quero. Mais nada. Hoje estou assim. Prometo a mim mesmo que
amanhã a mágoa já não será cigarra. Por agora mais não posso fazer.
Soares Teixeira – 06-03-2016
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